sexta-feira, 1 de maio de 2015

E mais uma vez, o indispensável Enio Bucchionni e o regime interno do partido bolchevique


E rapidamente o professor Enio Buchhionni vai se tornando uma das leituras obrigatórias aos militantes e ativistas dos movimentos sociais. Havia nos prometido quatro artigos sobre o regime interno do partido bolchevique à luz da recente publicação do livro de Pierre Broué pela editora Sundermann. A promessa dos quatro artigos ele já cumpriu. Estão lá os quatro textos prometidos no blog Convergência. O que esperamos é que Enio tenha ganhado gosto pela coisa e não pare mais de nos presentear com seus artigos que trazem à luz do dia o quão distante estão as organizações revolucionárias brasileiras do partido de Lênin, que tantos reivindicam em discursos, mas não estão dispostos a construí-lo na prática.

Em seu segundo artigo Bucchionni destaca não só com a ajuda de Broué mas também das Teses de Abril de Lênin e do Revolução e Contra-Revolução na Alemanha de Trotsky como foram tratadas as divergências no interior do partido que ajudou a classe a tomar o poder na Rússia nos decisivos meses de fevereiro a outubro de 1917.

Para quem ainda não leu o primeiro artigo também o postamos aqui com o título "O indispensável artigo de Enio Bucchionni sobre o regime interno do partido bolchevique". Para os que já o leram, eis o segundo. Boa leitura.


A propósito do regime interno dos bolcheviques entre fevereiro e outubro de 1917


A revolução de fevereiro de 1917 que derrubou a ditadura tzarista, segundo Broué, foi chamada de “insurreição anônima”. Levantamento espontâneo das massas, surpreendeu a todos os socialistas, inclusive os bolcheviques, cujo papel, como organização, foi nulo durante o processo insurrecional. Apesar de tal fato, seus militantes desempenharam individualmente um importante papel no trabalho político no interior das fábricas e nas ruas, como agitadores e organizadores.

O pano de fundo do levante de fevereiro de 17 era a miséria das massas e a guerra. A fome, que reinava nas cidades, foi consequência da participação do governo russo na sinistra I Guerra Mundial. Nela, cerca de quatro milhões de soldados russos morreram. O tzar, ao lado da França e Inglaterra e contra a vizinha Alemanha, integrava a guerra imperialista pela dominação e hegemonia do planeta.

Imediatamente após fevereiro, produz-se uma imensa fissura política na fração bolchevique, provocando uma polêmica que perdurará, na Rússia, até Outubro. Seu conteúdo e concepção, porem, perdurará até nossos dias.

As teses de Abril

Stalin e Kamenev, recém-libertos da prisão, assumem a direção do jornal Pravda e sustentam a posição de que a Rússia deveria continuar na guerra. Segundo Broué, para ambos, “a função dos sovietes era manter o governo provisório na medida em que siga o caminho de satisfação das reivindicações da classe operária”[1], ou seja, dão um “apoio condicional” ao governo burguês de colaboração de classes. Em essência, Kamenev e Stalin tinham a mesma posição dos mencheviques. Na conferência dos bolcheviques efetuada no dia 1 de abril fica acertado se considerar a reunificação com os mencheviques. Alguns membros da direção dos bolcheviques que estavam na Rússia, como Alexandra Kolontay e Alexander Shliapknov, são contrários a essas posições.

Ao mesmo templo, Lenin, então exilado, escreve as famosas teses de abril, iniciando a explosão de discussões no interior da fração bolchevique. Todos os militantes são chamados a decidir o futuro do partido e da revolução.

Dois aspectos deste caso são importantes de realçar. Primeiro, haverá, além de dois Congressos e inúmeras reuniões do seu Comitê Central, várias conferências da fração bolchevique durante os oito meses de intervalo entre fevereiro e outubro. Nelas, como sempre, os militantes participarão das discussões de todas as questões candentes pertinentes à revolução. Nenhuma discussão ficou bloqueada no interior da direção central. Houve total democracia interna para resolver as questões de estratégia e tática, bem como de concepções da revolução, sem que as diversas alas ou agrupamentos formados fossem expulsos por divergirem da linha oficial da maioria ocasional dentro do Comitê Central. A bem da verdade, nenhuma das alas em pugna quis expulsar a outra, nem tampouco qualquer uma delas ameaçou cindir o partido.

Segundo, quando Lenin retornou à Rússia depois de muitos anos de exílio, já ao descer do vagão blindado que o trouxe de volta, defendeu publicamente uma linha política oposta ao da Conferência de 1 de abril. Mais tarde, no dia 7, ela foi publicada no jornal Pravda, o órgão de propaganda dos Bolcheviques. Sob o título “Das Tarefas do Proletariado na Presente Revolução”, suas famosas teses de Abril saíram do espaço do debate interno, podendo ser lida pelo publico como um todo.

Assim era a fração bolchevique e o seu regime interno, bem como a materialização versátil do centralismo-democrático em plena revolução em marcha. Será que Lenin não teria de esperar o próximo Congresso ou Conferência dos bolcheviques, baixar suas teses de abril após a abertura oficial do pré-Congresso, e só depois disso, os militantes teriam acesso às divergências dentro da direção? Se assim o fizesse, se assim fosse o regime interno dos bolcheviques, não teria havido, com certeza, a revolução de Outubro.

Uma vez mais, as questões políticas centrais antecedem qualquer regime interno e suas normas organizativas. Diante de tais polêmicas de vulto, o centralismo tem de ceder diante da necessária democracia interna.

Dezessete dias depois da publicação das Teses no Pravda, foi realizada uma conferência nacional. Ela contou com a participação de 149 delegados eleitos por cerca de 80 mil militantes, isto em um país cuja população era de cerca de 160 milhões de pessoas. Do ponto de vista das proporções, em abril havia 1 bolchevique para cada 2 mil habitantes. Em outubro o número de militantes bolcheviques passou para perto de 240 mil, o que significaria 1 bolchevique para cada 667 habitantes, cifras absurdamente altas se as comparássemos com o Brasil atual.

Lenin jamais foi advertido por sua conduta no começo de abril. O máximo que a direção fez foi uma publicação de Kamenev no Pravda alegando que “tais teses representam apenas a opinião pessoal de Lenin”[2].

Também se engana quem crê que Lenin ganhou de cabo a rabo a totalidade das discussões propostas em suas Teses nessa Conferência. Ele ganhou – junto com Zinoviev e Bukarin , por ampla maioria – sobre a questão da guerra, ou seja, propondo a retirada da Rússia da guerra inter-imperialista. Venceu sobre a transferência do poder do Estado para os sovietes após um trabalho paciente e prolongado de conquistar as massas para tal fim. No entanto, obteve tão somente 60% dos votos na resolução que afirmava a necessidade de empreender a via da revolução socialista. E, finalmente, é derrotado no que se refere à resolução de mudança de nome do partido, já que o tradicional nome social-democrata significava, desde 1914, o conceito de traidores e defensores das burguesias nacionais em relação à I Guerra mundial dentro do movimento operário russo e internacional.[3]

O regime interno às vésperas da insurreição

Nas Teses de Abril, Lenin afirmava:
enquanto estivermos em minoria, desenvolveremos um trabalho de crítica e esclarecimento dos erros, defendendo ao mesmo tempo a necessidade de que todo o poder de Estado passe para os Sovietes de deputados operários, a fim de que, sobre a base da experiência, as massas se libertem dos seus erros.[4]
Ou seja, não estava na ordem do dia a tomada do poder. Cerca de quinze anos depois, Trotsky recordaria desse mês de abril no livro “Revolução e Contra-Revolução” na Alemanha com as seguintes palavras
Entretanto, o Partido chegou à insurreição de outubro, passando por uma série de degraus. Durante a demonstração de abril de 1917, uma parte dos bolcheviques lançou a palavra de ordem: “Abaixo o governo provisório”. O Comitê Central logo chamou à ordem os ultra-esquerdistas. Devemos, bem entendido, propagar a necessidade de derrubar o governo provisório; mas, não podemos ainda chamar as massas à rua por essa palavra de ordem, pois estamos ainda em minoria na classe operária. Se, nessas condições, conseguirmos derrubar o governo provisório, não o poderemos substituir e, por conseguinte, auxiliaremos a contra-revolução. É preciso explicar pacientemente às massas o caráter antipopular desse governo antes que soe a hora de sua derrubada. Tal foi a posição do Partido.[5]
Porém, cinco meses depois, refugiado na Finlândia devido às perseguições das jornadas de julho, Lenin escreve em 13 de setembro para o Comitê Central bolchevique, que se reuniria no dia 15 sem a sua presença
Depois de haver conseguido a maioria no interior dos sovietes das duas capitais (Petrogrado e Moscou), os bolcheviques podem e devem tomar o poder (…) A história jamais nos perdoará se não tomarmos o poder agora.[6] 
Novamente a fração bolchevique se vê engalfinhada numa brutal luta interna. Segundo Broué “Lenin está separado da maioria dos dirigentes bolcheviques por uma distância igual a que estava no mês de abril”. Mais adiante, as cartas de Lenin com esse conteúdo “não conseguem convencer o Comitê Central. Kamenev se pronuncia contrário às propostas de Lenin e exige que o partido tome medidas contra qualquer tentativa de insurreição. Trotsky é partidário da insurreição, porém pensa que esta deve ser decidida pelo congresso pan-russo dos sovietes. Por fim, a maioria dos membros do Comitê Central se inclina pela posição de Kamenev, que propõe que sejam queimadas as cartas de Lenin, deixando-as sem resposta.” Assim era a receptividade que a maioria do CC dava às posições da “direção histórica” do partido, a mais alta “autoridade”, ao mais “prestigiado” dos bolcheviques. [7]

Esse relato expõe, uma vez mais, a fratura aberta na fração bolchevique em torno da discussão sobre ir ou não à insurreição e, se sim, de que maneira. Aí se misturam questões de estratégia e tática sem precedentes. A luta interna extravasa por completo os limites do regime interno, do centralismo-democrático. Novamente a política ultrapassa a esfera organizativa. De modo fracional, fora dos marcos do regime interno, uma vez mais, Lenin começa a batalha política. A história mostraria se tinha ou não razão em sua ação. Afirma Broué
Lenin convence plenamente o jovem Smilga, presidente do soviet regional do exército, marinha e dos operários da Finlândia e começa a conspirar com ele contra a maioria do comitê central e o utiliza para ‘fazer propaganda dentro do partido’ em Petrogrado e em Moscou, examina com ele os mais diversos planos para por em marcha a insurreição e bombardeia o comitê central com uma série de cartas veementes que denunciam os “titubeios” e “vacilações” dos dirigentes.[8]
Em 29 de setembro, menos de um mês antes da revolução, Lenin “afirma que considera inadmissível que não se tenha respondida às suas cartas e, mais ainda, que o Pravda censure os seus artigos, pois isso tem toda uma aparência de ‘uma delicada alusão ao amordaçamento e um convite a se calar”[9]. Assim, ao insistir que suas posições sejam veiculadas no Pravda, Lenin se propõe organizar uma fração política pública e ameaça se demitir do Comitê Central de modo a poder, legalmente no sentido do regime interno, ter o direito de fazer propaganda nas fileiras do partido.

Afinal, em 10 de outubro, consegue, por 10 votos a 2, que o comitê central aceite sua proposta sobre a insurreição. Os dois votos contrários são de Zinoviev – braço direito de Lenin durante os anos anteriores – e Kamenev. Segundo Broué, estes dois ”desde o dia seguinte apelam contra a decisão do Comitê Central em sua ‘Carta sobre o momento atual’, dirigida às principais organizações do partido”.[10]

Uma vez mais esse episódio revela o funcionamento do regime interno da fração bolchevique, que extrapola o senso comum de todos os que viveram uma militância em partidos que se reivindicam leninistas. Naquele momento, todos os militantes da fração bolchevique são imediatamente convocados a participar da discussão e decidir os rumos do partido. Os bolcheviques não aprisionam as divergências na redoma do seu Comitê Central e, via o centralismo-democrático ou por fora dele, as posições divergentes chegam aos quadros partidários e, daí, às bases. Tanto é assim que alguns poucos dias depois, Zinoviev e Kamenev lançam suas posições contra a insurreição publicamente no jornal de Maximo Gorki. Lenin, em cartas enviadas ao partido, chama Zinoviev e Kamenev de “fura-greves” e exige a expulsão deles, o que não é aceito pelo comitê central após duras discussões.

Vitoriosa a insurreição, na tarde de 25 de outubro é inaugurado o Congresso dos Sovietes que tomaria o poder em suas mãos. Kamenev é proposto para ocupar a presidência do órgão representando o partido bolchevique. Em 1919, Zinoviev é eleito presidente do Comitê Executivo da Internacional Comunista, a recém-criada III Internacional.

Assim se forjava a unidade e a coesão do partido. Assim eram tratados os militantes que divergiam, nas ocasiões mais tensas e fundamentais, sobre as questões políticas mais transcendentais nos dias que abalaram o mundo.

Assim era a fração bolchevique.

Referencias Bibliográficas:

BROUÈ, Pierre. El partido bolchevique, Editorial Ayuso, 1973, Madrid

LENIN, Vladimir. Obras Escolhidas em três tomos, Edições Avante!, 1977, Lisboa https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/04_teses.htm (consultado dia 16 de Abril de 2015)

TROTSKY, Leon. Revolução e Contra-Revolução na Alemanha, Editora Lammert, 1968, Rio de Janeiro

BUCCHIONI, Enio. A propósito do regime interno dos bolcheviques antes de fevereiro de 1917, Blog Convergência, http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=4096 (consultado dia 16 de Abril de 2015)

Notas:
[1] Broué, 116
[2] Broué, 119
[3] Broué, 121
[4] Lenin – https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/04_teses.htm
[5] Trotsky, 71
[6] Broué, 130
[7] Broué, 133
[8] Broué, 131
[9] Broué, 132
[10] Broué, 132

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