domingo, 10 de maio de 2015

Os burocratas e a adjetivação de classe no interior das organizações revolucionárias


Em seu quarto e último artigo da série "A propósito do regime interno do partido bolchevique", o professor Enio Bucchioni se vale não dos registros do Pierre Broué mas das posições de Leon Trotsky diante de uma grande polêmica surgida nos anos 1930 no interior da Oposição de Esquerda, e em especial do SWP, partido socialista dos trabalhadores nos Estados Unidos. O interesse de Enio aqui é detonar o maniqueísmo comum nos debates dentro das esquerdas que reivindicam o movimento operário desconstruindo argumentos que se propõem a resolver as diferenças de forma tremendamente simples (e desonesta) rotulando determinada posição divergente como fruto de uma pressão de classe estranha ao proletariado. A "adjetivação de classe" como nomeia o professor, não passa no fim das contas de uma herança maldita do stalinismo e da própria burocratização dos partidos revolucionários, não tendo absolutamente nada a ver com as experiências do leninismo, nem muito menos do trotskismo.

Não são os burocratas os que são os alvos de tal adjetivação. Pelo contrário, estes tem uma capacidade singular de se adaptar e se esconder. Como nos chama atenção o professor Enio: "Todo burocrata que se preze não larga jamais a direção do seu partido, qualquer que seja a política e a linha do mesmo."

Os demais textos de Bucchioni inicialmente divulgados no Blog Convergência também podem ser lidos aqui:

Boa leitura e esperamos que com ela, conclusões melhores ainda.

A propósito do regime interno dos bolcheviques: a visão de Trotsky


As divergências internas a um Partido significam necessariamente o reflexo da existncia de pressões de classe em seu interior, ou seja, numa discussão interna uma das alas é a “proletária, revolucionária” e as outras são pequeno-burguesas ou pró-burguesas?

Buscando debater com estes questionamentos, o texto a seguir narra, nas mais diversas situações e em anos distintos, seja no interior do partido bolchevique, seja posteriormente na IV Internacional, a compreensão de Trotsky sobre o regime interno das organizações leninistas. Não se pretende, nem seria possível, encerrar por aqui a concepção de regime interno de um partido desse tipo. Nosso objetivo, portanto, é fornecer informações para que todos os interessados no tema possam conhecer, aprofundar e meditar sobre as palavras, idéias e concepções desse grande revolucionário.

A burocracia stalinista reflete qual interesse de classes?

É muito comum a adjetivação de classe em relação aos adversários numa luta política com o objetivo de desqualificação dos oponentes, às vezes até mesmo de caráter pessoal. Em vez de argumentos, fatos e análises, tenta-se imprimir um rótulo desqualificativo para, na luta interna, ganhar militantes com pouca ou nenhuma formação marxista. A afirmação mecânica de que diferentes tendências em um partido representam diferentes frações de classe, porém, era estranha a Trotsky. Ao narrar uma de suas polemicas internas no partido bolchevique, ele afirmava

“Por outra parte, não há de se entender de maneira demasiadamente simplista o pensamento de quem sustenta que as divergências no Partido e, com maior razão, os reagrupamentos, não são outra coisa do que uma luta de influências de classes opostas. Em 1920, a questão da invasão da Polônia suscitou duas correntes de opiniões, uma que preconizava uma política mais audaz, e outra que predicava a prudência. Estas duas correntes diferentes constituíam tendências de classes? Não creio que se possa afirmar isso. Tratava-se somente de divergências na apreciação da situação, das forças e dos meios. O critério essencial era o mesmo para ambas as partes.
Acontece com frequência que o Partido está em condições de resolver um problema por diferentes meios. E, se nesse caso, se produzem discussões, é apenas para se saber qual desses meios é o melhor, o mais eficaz, o mais econômico. Segundo o problema em discussão, essas divergências podem interessar a setores consideráveis do Partido, porém isso não quer dizer necessariamente que exista uma luta entre duas tendências de classe”.[1]
Muitas vezes, uma maioria de uma direção partidária que caracteriza qualquer dissidência de desvios “pequeno-burgueses”, considere-se “revolucionária e proletária e sempre com a linha correta”. Como ficou comum em organizações stalinistas, elas tendem a se transformar numa burocracia permanente, numa fração majoritária que ‘toma o poder’ dentro do Partido. Em geral, há interesses materiais nesse tipo de agrupamento, mas há também o que se chama de “pequeno poder”, principalmente no interior de organizações muito pequenas. É a conquista do prestígio e a tentação de preservá-lo ad eternum, seja como for possível.

Esse “pequeno poder” é bem real, pois tende a alinhar ao seu redor os bajuladores desejosos de participar desse círculo. Dentro de tal corte, é muito comum que surjam os ataques mais raivosos contra todos aqueles que discrepam da linha oficial, com o objetivo de afastá-los do Partido. Isso é feito, muitas vezes, através da “auto exclusão”, ou seja, o(s) que está (ão) em minoria acaba (m) por se afastar “voluntariamente” da organização.

Assim se referia Trotsky sobre o poder da burocracia stalinista:
“Todo desvio pode, no curso de seu desenvolvimento, se converter na expressão dos interesses de uma classe hostil ou semi-hostil ao proletariado. Dito isto, o burocratismo é um desvio, e um desvio nada saudável; esperamos que esta afirmação não seja polemica. No momento que isso ocorre, ela ameaça desviar o partido de sua linha justa, de sua linha de classe; é aí que reside o perigo. Porém (e esse é um fato muito instrutivo e também um dos mais alarmantes) os que afirmam com maior nitidez, com maior insistência, e até brutalmente, que toda divergência de critérios, todo grupo de opinião, ainda que seja temporário,são uma expressão dos interesses das classes inimigas do proletariado, não querem aplicar esse critério à burocracia”.[2]

O centralismo democrático para Trotsky

No livro Em Defesa do Marxismo Trotsky fazia a perfeita relação entre o regime interno do Partido com seus militantes, com as tendências e frações provisórias. Deve-se assinalar que a única fração permanente foi a fração da burocracia incrustrada nas entranhas dos aparatos do Partido e do Estado soviético, e, por seus interesses como camada social, acabou por exterminar todas as outras tendências e frações. Todo burocrata que se preze não larga jamais a direção do seu partido, qualquer que seja a política e a linha do mesmo. Segundo Trotsky
“O regime interior do partido bolchevique se caracteriza pelos métodos da centralização democrática. A concordância dessas duas noções não implica nenhuma contradição. O partido velava para que suas fronteiras estivessem sempre estritamente delimitadas, porém entendia que todos os que pertencessem a essas fronteiras tivessem o direito de determinar a orientação de sua política. A liberdade crítica e a luta de ideias formavam o conteúdo intangível da democracia do partido. A doutrina atual que proclama a incompatibilidade do bolchevismo com a existência de frações está em desacordo com os fatos. É um mito da decadência. A história do bolchevismo é, em realidade, a da luta de sus frações. Como uma organização autenticamente revolucionária que se propõe a mudar por completo o mundo e reúne sob suas bandeiras aos negadores, aos sublevados, aos combatentes de toda temeridade, poderia viver e crescer sem conflitos ideológicos, sem agrupamentos, sem formações fracionais temporais?. A clarividência da direção do partido conseguiu atenuar e abreviar várias vezes as lutas fracionais, porém não pode fazer mais que isso. O Comitê Central se apoiava nessa base efervescente de onde extraia a audácia de decidir e ordenar. A perfeita justeza de sua linha lhe conferia uma alta autoridade, precioso capital moral da centralização”.[3]

Há quem pense, seja nas ideologias de direita, seja nos meios de esquerda, que o conceito de centralismo-democrático significa pura e simplesmente a submissão dos militantes partidários às decisões da cúpula dirigente. Assim, caberia tão somente aos adeptos do partido implementar, executar as diretrizes da toda poderosa direção partidária. Tal afirmação, porem, se choca com o trotskismo de Trotsky
“Os problemas de organização do bolchevismo estão intimamente ligados aos de programa e tática (…)
Sabemos que que o regime se baseava nos princípios do centralismo democrático. Se supunha, desde o ponto de vista teórico, (e assim foi, desde o começo, na prática) que esses princípios implicavam a possibilidade absoluta para o partido de discutir, de criticar, de expressar seu descontentamento, de eleger, de destituir, ao mesmo tempo que permitia uma disciplina de ferro na ação, dirigida com plenos poderes pelos órgãos dirigentes eleitos e removíveis. Se se entendia por democracia a soberania de todo o partido sobre todos os organismos, o centralismo correspondia a uma disciplina consciente, ajuizadamente estabelecida, que pudesse garantir de certo modo a combatividade do partido (…)
No decorrer dos últimos anos, temos visto os representantes de maior responsabilidade da direção do partido fazer toda uma série de novas definições da democracia no partido, que se reduzem, no fundo, a dizer que a democracia e o centralismo significam simplesmente a submissão aos órgãos hierárquicos superiores (…)
Não se pode conceber a vida ideológica do partido sem grupos provisórios no terreno ideológico. Até agora ninguém descobriu outra maneira de proceder”[4]

Naturalmente, os grupos são um “mal” necessário, tanto como as divergências de opiniões. Porém, esse mal constitui um componente tão necessário da dialética da evolução do partido com as toxinas com relação á vida do organismo humano.

Trotsky, as frações internas e as frações públicas

Em fins da década de 1930 e começos dos anos 1940, houve uma imensa luta interna no Socialist Workers Party (SWP) norte-americano. A discussão, em essência, era sobre a defesa ou não da União Soviética, das conquistas da revolução de Outubro face à guerra mundial que se avizinhava e a possibilidade da União Soviética vir a ser derrotada pelo imperialismo.

Era uma questão de princípio, numa realidade bastante complexa, pois Stalin acabara de fazer um pacto com Hitler e, em consequência, o exército vermelho e os nazistas invadiram a Polônia e a ocuparam meio a meio.

A forte minoria, uns 40% do SWP, não defendia a União Soviética por causa da existência da burocracia stalinista e pela invasão da Polônia. Trotsky e a maioria do SWP defendiam as conquistas de Outubro e, em consequência, a luta mortal contra os imperialismos que ameaçavam invadir a União Soviética e esmagar aquelas conquistas colossais do proletariado mundial. Ao mesmo tempo, propugnavam a mais impiedosa luta pela revolução política contra o stalinismo.

A dimensão da democracia interna, nas palavras e propostas de Trotsky, assume uma preponderância extraordinária e é levada à máxima potência com o intuito de preservar a unidade do SWP até as últimas instâncias. No entanto, ao mesmo tempo, ele é totalmente inflexível na argumentação política contra a minoria.

Em meio a calorosas disputas com a minoria, Trotsky viria, em uma carta a Joseph Hansen, relembrar seus partidários da importância de garantir o mais amplo e livre debate como instrumento para preservar o partido. A importância política da disputa exigia flexibilidade democrática. Afirma Trotsky
“Alguns dos dirigentes da oposição estão preparando uma cisão; para isso apresentam a oposição, no futuro, como minoria perseguida. E muito característico de sua mentalidade. Creio que devemos responder-lhes mais ou menos da seguinte forma:
‘Vocês já estão preocupados com as nossas futuras repressões? Prometemos garantias mútuas para a futura minoria, independentemente de quem possa ser essa minoria, vocês ou nós. Estas garantias podem ser formuladas em quatro pontos:
1) Não proibição de frações;
2) Nenhuma restrição à atividade fracional, além das ditadas pela necessidade da ação comum;
3) As publicações oficiais devem, evidentemente, representar a linha estabelecida pelo novo Congresso ;
4) A futura minoria pode ter, se assim desejar, um boletim interno destinado aos membros do partido, ou um boletim comum de discussão com a maioria.’
A continuação dos boletins de discussão depois de uma larga discussão e um Congresso não é, evidentemente, uma regra, mais sim uma exceção, aliás, deplorável. Mas não somos, de modo algum, burocratas. Não temos regras imutáveis. Também no terreno organizativo somos dialéticos. Se temos no partido uma minoria importante que não está satisfeita com as decisões do Congresso, é incomparavelmente preferível legalizar a discussão depois do Congresso, do que ter uma cisão.
Se for necessário, podemos inclusive ir mais longe e propor-lhes publicar, sob a supervisão do novo Comitê Nacional, resumos especiais da discussão, não só para os membros do partido, como também para o público em geral. Devemos ir o mais longe possível neste aspecto, com o fim de desarmar as suas queixas, que são no mínimo prematuras, colocando-lhes obstáculos que impeçam a preparação de uma ruptura.
De minha parte, acredito que, nas atuais condições, o prolongamento da discussão, se canalizada com boa vontade pelas duas partes, só pode servir para a educação do partido”.[5]

Parlamentarismo, sindicalismo e o regime interno

A burocratização dos partidos revolucionários, principal responsável pela morte dos debates internos, se relaciona a diversos fatos. Muitas vezes, nas democracias-burguesas mais estáveis, à adaptação ao regime liberal-burguês é o principal responsável por isto.

Nestes casos, corre-se o risco do partido sofrer pressões eleitoreiras. Também é um fato que sempre existiram organizações que queriam mais e mais parlamentares achando que o socialismo poderia vir através de uma maioria no Parlamento e/ou fazendo alianças com setores “progressistas“ da burguesia. Esse perigo existe.

Deve-se relembrar, no entanto, que a falência da II Internacional há um século não foi apenas pela adaptação ao Parlamento e aos governos de seus respectivos países. Os poderosíssimos sindicatos dominados pela antiga socialdemocracia também tiveram papel central nessa adaptação. Tanto os ambientes parlamentares como os sindicais refletem ideologicamente no interior de qualquer partido e podem criar correntes e agrupamentos reformistas, ainda que camuflados por uma verborragia superradical.
“Seria uma imbecilidade pensar que a ala proletária do partido é perfeita. Os trabalhadores só alcançam gradualmente uma clara consciência de classe. Os sindicatos sempre criam um caldo de cultivo para desvios oportunistas. Inevitavelmente teremos que enfrentar essa questão numa das próximas etapas. Mais de uma vez o partido terá que recordara seus próprios militantes sindicais que uma adaptação pedagógica às camadas mais atrasadas do proletariado não deve se transformar numa adaptação política à burocracia conservadora dos sindicatos. Toda nova etapa de desenvolvimento, todo aumento nas fileiras do partido e a complexificação dos métodos de seu trabalho, não somente abrem novas possibilidades como também engendra novos perigos. Os operários nos sindicatos, ainda que educados na mais revolucionária das escolas, frequentemente desenvolvem a tendência a se liberar do controle do partido”[6]

Trotsky, a juventude e o regime interno

Entre os instrumentos para garantir a vida sadia no partido, Trotsky via na rebeldia justa dos jovens um potente aliado. O espirito questionador, dinâmico e não-conformista da Juventude seriam importantes barreiras à burocracia.

No artigo sobre o “Novo Curso”, assim Trotsky entendia a juventude estudantil na sociedade pós-revolucionária e no interior do Partido, relacionando-os com o regime partidário e o processo de burocratização em curso:
“Esta última (a juventude estudantil) como temos visto, reage de maneira particularmente vigorosa contra o burocratismo. Justamente Lenin havia proposto, para combater o burocratismo, recorrer decididamente aos estudantes. Devido à sua composição social e suas vinculações, os jovens estudantes são um reflexo de todos os grupos sociais do nosso partido, assim como seu estado de ânimo. Sua sensibilidade e seu ímpeto os levam a imprimir imediatamente uma força ativa a esse estado de ânimo. Como estudam , eles se esforçam para explicar e generalizar. Isso não quer dizer que todos os seus atos e estados de ânimo reflitam tendências sadias. Se assim ocorresse, significaria, e não é esse o nosso caso, ou que tudo marcha bem no partido ou que a juventude já não é o reflexo do partido.
Em princípio, é justo afirmar que nossa base não são os estabelecimentos de ensino, mas os núcleos de fábrica. Porém, ao dizer que a juventude é nosso barômetro, designamos um valor não essencial às suas manifestações políticas, mas algo sintomático. O barômetro não cria o tempo, apenas se limita a registrá-lo. Na política, o tempo é formado na profundeza das classes e nos terrenos onde essas classes entram em contato entre si….
(…) Além disso, um setor considerável de nossos novos estudantes são comunistas que tiveram uma experiência revolucionária bastante importante. E os partidários mais obstinados do “aparato” se equivocam enormemente ao desprezar essa juventude que é nosso meio de autocontrole, que deverá tomar nosso lugar e a quem pertence o futuro”.[7]

Assim era o regime interno para Trotsky, em perfeita continuidade com o partido bolchevique e com Lenin, o grande artífice e criador do partido e do regime interno.

Assim era o regime interno da IV Internacional enquanto viveu o seu maior dirigente.

Assim deve ser o regime para todos os que aderiram ao legado desses dois dos nossos maiores mestres.

Referências bibliográficas:
TROTSKY, Leon. Textos sobre o Centralismo Democrático. Buenos Aires: Antídoto, 1992.
TROTSKY, Leon. Em Defesa do Marxismo. São Paulo: Proposta, s.d.

 Notas:
[1] Trotsky, 1923, p 29
[2] Trotsky, 1923, p 28
[3] Trotsky, 1937
[4] Trotsky, 1923, 47-48
[5] Trotsky, 1940
[6] Trotsky, 1940
[7] Trotsky, 19

domingo, 3 de maio de 2015

Monolitismo e bolchevismo não combinam. Nem mesmo em plena guerra.


Em seu terceiro dos quatro artigos sobre o regime interno do Partido Bolchevique, o professor Enio Bucchioni trata das frações públicas logo após a revolução de outubro tomando como exemplo as contendas que envolveram a paz em separado com a Alemanha e seus desdobramentos no decorrer da guerra civil que assolou os estados soviéticos até 1921.

Com mais este texto Bucchioni reforça a ideia de um perfil de organização que de absolutamente nada teve de monolítico, convivendo com disputas duríssimas não só em seu interior como também publicamente sem que isso significasse expulsões ou esfacelamentos dos setores em posições antagônicas.

Em resumo: Monolitismo e bolchevismo não combinam. Nem mesmo em plena guerra.

Boa leitura e caso ainda não tenha lido os artigos anteriores você pode fazê-los aqui e aqui.

A propósito do regime interno dos bolcheviques após Outubro: as frações públicas


Mal triunfada a revolução de Outubro na Rússia, uma polêmica infernal explode no partido bolchevique. Segundo a descrição de Pierre Broué, ela era levada outra vez por Kamenev e diversos outros dirigentes do partido. O processo político em torno desse debate em muito nos ajuda a compreender os motivos do surgimento das frações públicas no partido de Lenine como os bolcheviques lidavam com suas divergências políticas.

Em 29 de outubro, quatro dias após a insurreição, uma reunião do Comitê Central, onde estão ausentes Lenin, Trotsky e Stalin, aprova negociar uma coalizão governamental com os mencheviques e socialistas revolucionários, partidos cujas alas direita abandonaram o II Congresso pan-russo dos sovietes que aprovou a insurreição e a tomada do poder. Os bolcheviques Riazanov – presidente dos sindicatos de Petrogrado em fevereiro – e Lunacharsky – comissário do povo para a Educação – declaram estar de acordo com a eliminação de Lenin e Trotsky do governo se esta for a condição para a constituição da coalizão com todos os partidos socialistas.

Em nova reunião, o Comitê Central rechaça essa postura. Lenin propõe a imediata ruptura de negociações. Já Trotsky quer prossegui-las em busca de condições que darão garantias de respondência aos bolcheviques no seio da coalizão com os partidos que no congresso se opuseram ao poder criado pelos sovietes. A condição seria que aceitassem reconhecer os sovietes como um fato consumado, assumindo suas responsabilidades a este respeito. A proposta de Trotsky é aprovada no Comitê Central. 

As frações publicas em luta

Apesar da vitória na proposta de Trotsky, nem todos se sentem contemplados pela deliberação da direção. A partir dela, se inicia, em publico, uma disputa política que extrapola as fronteiras do partido. Segundo Broué
a minoria bolchevique não se resigna, pois crê que a resolução do Comitê Central impedirá, de fato, qualquer tipo de coligação no governo. Kamenev, que segue presidindo o comitê executivo dos sovietes, propõe a demissão do conselho dos comissários do povo exclusivamente bolchevique, presidido por Lenin, e a constituição, em seu lugar, de um governo de coalizão.[1]
Kamenev propõe, publicamente e por fora dos órgãos partidários, a destituição do governo composto por Lenin e Trotsky. Nada mais, nada menos! Em seguida, narra Pierre Broué
[o bolchevique] Volodarsky opõe a essa moção aquela que foi adotada pelo comitê central. Durante a votação, numerosos bolcheviques comissários do povo [equivalentes aos ministros de um governo burguês] como Rikov, Noguin, Lunacharsky, Miliutin, Teodorovich e Riazanov, assim como alguns responsáveis do partido como Zinoviev, Lozovsky e Riazanov votam contra a resolução apresentada pelo seu próprio partido.
Lenin, num manifesto que se difunde por todo o país, chama os dissidentes de desertores. Em outras palavras, o regime interno dos bolcheviques vai para o espaço e as frações políticas do partido se expressam publicamente. Segundo Broué, Lenin não admite qualquer tipo de vacilação: se a oposição não aceita as decisões da maioria, ela deve abandonar o partido
A cisão seria um fato extremamente lamentável. Contudo, uma cisão honrada e franca é, na atualidade, mais preferível do que uma sabotagem interna e o não cumprimento de nossas próprias resoluções.[2]
Não houve a cisão. A oposição é condenada pelo conjunto dos militantes e pelas passeatas de operários e soldados que haviam aprovado a insurreição. Kamenev, Miliutin, Rikov e Noguin assim como Zinoviev, seguem no partido. Segundo Broué, Zinoviev escreve no Pravda de 21 de novembro de 1917
Nosso direito e nosso dever é advertir o partido de seus próprios erros. Contudo, permanecemos com o partido. Preferimos cometer erros com milhões de operários e soldados e morrer com eles do que nos separarmos deles nesta hora decisiva da história. Não haverá, não pode haver uma cisão no partido.[3]
Os fatos acima descritos mostram com precisão como era maleável o regime interno dos bolcheviques e como funcionava o centralismo-democrático frente às questões políticas transcendentais concernentes aos destinos da revolução de Outubro. A democracia interna é elevada à enésima potência e as opiniões divergentes são expostas publicamente, todos os militantes são chamados a decidir e até mesmo a massa de operários e soldados interveio nos rumos do partido. Assim era o partido de Lenin. Assim não foi o partido de Stalin.

Os debates sobre a guerra ou paz com a Alemanha imperialista

Os tempos posteriores a Outubro colocaram os bolcheviques em imensas discussões internas para poderem decidir os rumos da primeira revolução socialista da história. Formaram-se, em distintas ocasiões, grupos, tendências, frações internas e frações públicas, como era, então, a tradição do partido bolchevique.

Um dos casos mais importantes foi sobre a continuação ou não da guerra contra a Alemanha imperialista. Desde o começo do I Guerra Mundial, a ditadura tzarista havia feito um bloco beligerante ao lado da França e Inglaterra contra a Alemanha, Itália e o império austro-húngaro. Lenin, então exilado na Suíça, redige um manifesto do Comitê Central do partido em que afirma

Não há dúvida alguma de que o mal menor, desde o ponto de vista da classe operária e das massas trabalhadoras de todos os povos da Rússia, seria a derrota da monarquia tzarista que é o mais bárbaro e reacionário dos governos, o que oprime o maior número de nacionalidades e a maior proporção da população da Europa e da Ásia.[4]

A revolução de outubro materializou o pensamento leninista. No entanto, a derrubada do czar ainda manteve, em tese, a Rússia na guerra contra o imperialismo alemão. Assim relata Broué

para o governo bolchevique, a paz se converte numa necessidade absoluta, tanto para satisfazer o exército e o campesinato, como também para ganhar tempo com vistas à  revolução na Europa.  A manobra é delicada: é preciso, simultaneamente, negociar (a paz) com os governos burgueses e lutar politicamente contra eles, isto é, utilizar as negociações como uma plataforma de propaganda revolucionária. Há que se evitar qualquer aparência de compromisso com um ou com o outro dos bandos imperialistas.[5]

As negociações se iniciam na cidade de Brest-Litovsky em novembro de 1917, ou seja, imediatamente após a revolução, entre uma delegação russa e uma alemã, já que o outro bando imperialista – França e Inglaterra, aliados dos czares – se negou a delas participar. Um armistício é assinado em 2 de dezembro, permanecendo os exércitos russo e alemão inamovíveis em suas respectivas posições territoriais. As conversações de paz começam em 22 de dezembro e Trotsky é designado pelo governo soviético para encabeçar a delegação russa.

Em 5 de janeiro, o governo alemão, através do general Hoffman, coloca na mesa a proposta do imperialismo: a Polônia, Lituânia, Rússia branca e metade da Letônia – todos eles territórios da então Rússia –devem permanecer ocupadas pelo exército alemão. É dado aos soviéticos apenas dez dias para dizer se aceitam, sim ou não. Se sim, a paz é assinada. Se não, a guerra continua. 

As três posições do comitê central dos Bolcheviques

Segundo Broué, a delegação russa abandona Brest-Litovsky com uma posição baseada nas propostas de Trotsky
Devem os bolcheviques ceder ao facão que ameaça com decapitá-los? Podem opor resistência, como sempre disseram que fariam em semelhante circunstância, declarando a ‘guerra revolucionária’? Nem Lenin, que defende a primeira dessas posturas, nem Bukarin, partidário da segunda, conseguem a maioria no Comitê Central, que, por último, resolve seguir a posição de Trotsky por 9 votos a 7, que é colocar um fim à guerra sem assinar a paz.[6]
No entanto, no dia 17 os alemães lançam um grande ofensiva nas frentes de guerra. Lenin propõe ao Comitê Central retomar as negociações de paz com a Alemanha. Novamente Lenin perde e sua proposta é derrotada por 6 a 5. Bukarin se junta a Trotsky e impõem retardar o recomeço das negociações de paz até que fique claro o rumo da ofensiva alemã e seus reflexos no movimento operário dos dois países.

No dia 18 o Comitê Central volta a se reunir, já que o avanço das tropas alemãs é profundo e rápido na Ucrânia, país que, a época, fazia parte da Rússia. Lenin, ao saber disso, propõe recomeçar as negociações, Trotsky o acompanha nessa votação e ela é aceita por 7 votos a 5.
o governo soviético, em consequência, tomará de novo contato com o Estado Maior alemão, cuja resposta chega no dia 23 de fevereiro. As condições se tornaram ainda piores… Desta vez se exige a evacuação da Ucrânia, Livônia e Estônia. A Rússia vai ser privada de 27% de sua superfície cultivável, de 26% de suas vias férreas e de 75% de sua produção de aço e de ferro.[7]
O tratado que mutila a Rússia é assinado no dia 3 de março de 1918 em Bret-Litovsky. A retirada da guerra foi um dos principais objetivos da revolução e uma das prioridades do recém-criado governo bolchevique. Impopular entre os russos devido às imensas perdas humanas – cerca de quatro milhões de mortos- essa guerra havia trazido fome para todo o povo e uma desmoralização e decomposição do exército do czar frente às derrotas nos campos de batalha. Contraditoriamente, ela foi um dos fatores vitais para o sucesso de Outubro, já que os soldados, em sua imensa maioria camponeses, foram ganhos para a política dos bolcheviques pela oposição principista do partido ao confronto armado.

Os termos do Tratado de Brest-Litovski eram humilhantes. Através deste, a Rússia abria mão do controle sobre a Finlândia, Países Bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), Polônia, Bielorrússia e Ucrânia, bem como dos distritos turcos de Ardaham e Kars, e do distrito georgiano de Batumi. Estes territórios continham um terço da população da Rússia, metade de sua indústria e nove décimos de suas minas de carvão.

O regime e os ‘comunistas de esquerda’

A decisão do Comitê Central de aceitar a paz com os imperialistas alemães, longe de aquietar os bolcheviques e fazer com que a minoria acate a decisão da maioria (como muitos poderiam pensar que funcionava o regime interno e o centralismo-democrático dos revolucionários de 1917) provocou ainda mais discussão no partido. Bukarin e Uritsky, ambos membros do Comitê Central, junto com Piatakov, presidente dos Comissários do Povo em Kiev e Vladimir Smirnov, dirigente da insurreição de outubro em Moscou. O grupo se afasta de suas funções e retomam a liberdade de agitação dentro do partido. Segundo Broué
o comitê regional de Moscou declara que deixa de reconhecer a autoridade do Comitê Central até que se leve a cabo a reunião de um Congresso extraordinário (…)
Baseado numa proposta de Trotsky, o Comitê Central vota uma resolução que garante a Oposição o direito de se expressar livremente no seio do partido. O jornal moscovita dos bolcheviques, o Social Democrata, empreende uma campanha contra a aceitação do tratado (de Brest- Litovsky) desde o dia 2 de fevereiro. A República soviética da Sibéria se nega a reconhecer a validade (do tratado de paz) e permanece em estado de guerra coma Alemanha.[8]
Essa descrição de Broué mostra toda a versatilidade o regime interno dos partido enquanto Lenin viveu; como é necessário adaptar essa estrutura organizativa aos desígnios da luta de classes e às decisões que todos os militantes do partido deveriam tomar.

Contrariamente ao que o stalinismo divulgou posteriormente, não há Comitê Central todo-poderoso e monolítico, não há “direção histórica” de Lenin e Trotsky que conseguiriam, organizativamente, impor suas posições de cima a baixo pelas goelas dos militantes.

Diga-se de passagem, não há nada de excepcional nessa divergência que se materializou em frações públicas. Não seria a primeira vez, como já vimos nas discussões sobre a insurreição, nem a última em que as travas organizativas pudessem impedir as discussões entre os bolcheviques. Mais a frente, nas páginas de Broué sobre o partido bolchevique, pode-se ver que é sob a batuta do stalinismo que se encerrará toda e qualquer discussão no seio do partido. Dessa maneira, o bolchevismo será sepultado. Como diria Trotsky cerca de 10 anos depois, Stalin será o coveiro da revolução.

Narrando a logica das frações publicas, Broué afirma
no dia 4 de março, o comitê do partido em Petrogrado publicou o primeiro número de um jornal diário, o Kommunist, cujo comitê de redação está formado por Bukarin, Karl Radek e Uritsly, e que será, daqui em diante o órgão público da oposição, cujos integrantes serão conhecidos como ‘comunistas de esquerda’.[9]
O Congresso do partido é realizado, tal qual pleiteia a oposição, mas estes ficam em minoria e suas teses são derrotadas. Nesse Congresso, entre outras coisas, a fração bolchevique abandona em definitivo o nome de social–democracia, que daqui em diante ficará propriedade até os dias atuais de todos os mencheviques que rastejam por esse mundo afora. É adotado o nome de partido comunista russo (bolchevique).

A continuidade legal da fração após o Congresso

No entanto, as discussões sobre fazer ou não a guerra revolucionária contra a Alemanha imperialista seguem. O jornal público da oposição, o Kommunist passa a ser semanal. Porém, o panorama muda radicalmente pouco tempo depois. Em 25 de maio de 1918, estala a guerra civil contra os inimigos da revolução de outubro que se sublevaram militarmente, guerra que permanecerá por cerca de dois anos e meio.

Em junho, a ala esquerda do partido Socialistas Revolucionários, os SR, que fazia parte do governo soviético, “decide empreender uma campanha terrorista com o objetivo de que se recomece as hostilidades contra a Alemanha. Por ordem do seu Comitê Central, um grupo de SR de esquerda, do qual faz parte o jovem Blumkin, membro da Checa, comete um atentado com êxito contra a vida do embaixador da Alemanha, o conde Von Mirbach. Outros SR de esquerda, que também pertencem à Checa, prendem alguns responsáveis comunistas e tentam provocar um levantamento em Moscou.”[10]. Os comunistas de esquerda, com Bukarin à frente, vão participar da repressão aos SR de esquerda e se integram por completo nas frentes de batalha da guerra civil.

Um ano mais tarde, em 13 de março de 1919, Segundo Broué, Lenin assim se referirá aos episódios das divergências sobre o tratado de paz com a Alemanha imperialista e sobre os “comunistas de esquerda” dos bolcheviques
A luta que se originou em nosso partido no ano passado foi extraordinariamente proveitosa: suscitou inumeráveis choques sérios, porém não há luta que não tenha choques.[11]
Assim Lenin compreendia as divergências internas, como algo fecundo, positivo para o partido. A democracia era o pré-requisito para a unidade na ação e o mais eficaz antídoto contra toda e qualquer divisão do partido. Assim era o partido bolchevique!


Bibliografia

BROUÉ, Pierre. El partido bolchevique, Editorial Ayuso, 1973, Madrid
LENIN, Vladimir. Oeuvres Complétes, Tomo XXVI,

[1] Broué, 139
[2] Lenin, 293
[3] Broué, 139
[4] Broué, 107
[5] Broué, 155
[6] Broué, 156
[7] Broué, 157
[8] Broué, 158
[9] Broué, 158
[10] Broué, 162
[11] Broué, 162

sexta-feira, 1 de maio de 2015

E mais uma vez, o indispensável Enio Bucchionni e o regime interno do partido bolchevique


E rapidamente o professor Enio Buchhionni vai se tornando uma das leituras obrigatórias aos militantes e ativistas dos movimentos sociais. Havia nos prometido quatro artigos sobre o regime interno do partido bolchevique à luz da recente publicação do livro de Pierre Broué pela editora Sundermann. A promessa dos quatro artigos ele já cumpriu. Estão lá os quatro textos prometidos no blog Convergência. O que esperamos é que Enio tenha ganhado gosto pela coisa e não pare mais de nos presentear com seus artigos que trazem à luz do dia o quão distante estão as organizações revolucionárias brasileiras do partido de Lênin, que tantos reivindicam em discursos, mas não estão dispostos a construí-lo na prática.

Em seu segundo artigo Bucchionni destaca não só com a ajuda de Broué mas também das Teses de Abril de Lênin e do Revolução e Contra-Revolução na Alemanha de Trotsky como foram tratadas as divergências no interior do partido que ajudou a classe a tomar o poder na Rússia nos decisivos meses de fevereiro a outubro de 1917.

Para quem ainda não leu o primeiro artigo também o postamos aqui com o título "O indispensável artigo de Enio Bucchionni sobre o regime interno do partido bolchevique". Para os que já o leram, eis o segundo. Boa leitura.


A propósito do regime interno dos bolcheviques entre fevereiro e outubro de 1917


A revolução de fevereiro de 1917 que derrubou a ditadura tzarista, segundo Broué, foi chamada de “insurreição anônima”. Levantamento espontâneo das massas, surpreendeu a todos os socialistas, inclusive os bolcheviques, cujo papel, como organização, foi nulo durante o processo insurrecional. Apesar de tal fato, seus militantes desempenharam individualmente um importante papel no trabalho político no interior das fábricas e nas ruas, como agitadores e organizadores.

O pano de fundo do levante de fevereiro de 17 era a miséria das massas e a guerra. A fome, que reinava nas cidades, foi consequência da participação do governo russo na sinistra I Guerra Mundial. Nela, cerca de quatro milhões de soldados russos morreram. O tzar, ao lado da França e Inglaterra e contra a vizinha Alemanha, integrava a guerra imperialista pela dominação e hegemonia do planeta.

Imediatamente após fevereiro, produz-se uma imensa fissura política na fração bolchevique, provocando uma polêmica que perdurará, na Rússia, até Outubro. Seu conteúdo e concepção, porem, perdurará até nossos dias.

As teses de Abril

Stalin e Kamenev, recém-libertos da prisão, assumem a direção do jornal Pravda e sustentam a posição de que a Rússia deveria continuar na guerra. Segundo Broué, para ambos, “a função dos sovietes era manter o governo provisório na medida em que siga o caminho de satisfação das reivindicações da classe operária”[1], ou seja, dão um “apoio condicional” ao governo burguês de colaboração de classes. Em essência, Kamenev e Stalin tinham a mesma posição dos mencheviques. Na conferência dos bolcheviques efetuada no dia 1 de abril fica acertado se considerar a reunificação com os mencheviques. Alguns membros da direção dos bolcheviques que estavam na Rússia, como Alexandra Kolontay e Alexander Shliapknov, são contrários a essas posições.

Ao mesmo templo, Lenin, então exilado, escreve as famosas teses de abril, iniciando a explosão de discussões no interior da fração bolchevique. Todos os militantes são chamados a decidir o futuro do partido e da revolução.

Dois aspectos deste caso são importantes de realçar. Primeiro, haverá, além de dois Congressos e inúmeras reuniões do seu Comitê Central, várias conferências da fração bolchevique durante os oito meses de intervalo entre fevereiro e outubro. Nelas, como sempre, os militantes participarão das discussões de todas as questões candentes pertinentes à revolução. Nenhuma discussão ficou bloqueada no interior da direção central. Houve total democracia interna para resolver as questões de estratégia e tática, bem como de concepções da revolução, sem que as diversas alas ou agrupamentos formados fossem expulsos por divergirem da linha oficial da maioria ocasional dentro do Comitê Central. A bem da verdade, nenhuma das alas em pugna quis expulsar a outra, nem tampouco qualquer uma delas ameaçou cindir o partido.

Segundo, quando Lenin retornou à Rússia depois de muitos anos de exílio, já ao descer do vagão blindado que o trouxe de volta, defendeu publicamente uma linha política oposta ao da Conferência de 1 de abril. Mais tarde, no dia 7, ela foi publicada no jornal Pravda, o órgão de propaganda dos Bolcheviques. Sob o título “Das Tarefas do Proletariado na Presente Revolução”, suas famosas teses de Abril saíram do espaço do debate interno, podendo ser lida pelo publico como um todo.

Assim era a fração bolchevique e o seu regime interno, bem como a materialização versátil do centralismo-democrático em plena revolução em marcha. Será que Lenin não teria de esperar o próximo Congresso ou Conferência dos bolcheviques, baixar suas teses de abril após a abertura oficial do pré-Congresso, e só depois disso, os militantes teriam acesso às divergências dentro da direção? Se assim o fizesse, se assim fosse o regime interno dos bolcheviques, não teria havido, com certeza, a revolução de Outubro.

Uma vez mais, as questões políticas centrais antecedem qualquer regime interno e suas normas organizativas. Diante de tais polêmicas de vulto, o centralismo tem de ceder diante da necessária democracia interna.

Dezessete dias depois da publicação das Teses no Pravda, foi realizada uma conferência nacional. Ela contou com a participação de 149 delegados eleitos por cerca de 80 mil militantes, isto em um país cuja população era de cerca de 160 milhões de pessoas. Do ponto de vista das proporções, em abril havia 1 bolchevique para cada 2 mil habitantes. Em outubro o número de militantes bolcheviques passou para perto de 240 mil, o que significaria 1 bolchevique para cada 667 habitantes, cifras absurdamente altas se as comparássemos com o Brasil atual.

Lenin jamais foi advertido por sua conduta no começo de abril. O máximo que a direção fez foi uma publicação de Kamenev no Pravda alegando que “tais teses representam apenas a opinião pessoal de Lenin”[2].

Também se engana quem crê que Lenin ganhou de cabo a rabo a totalidade das discussões propostas em suas Teses nessa Conferência. Ele ganhou – junto com Zinoviev e Bukarin , por ampla maioria – sobre a questão da guerra, ou seja, propondo a retirada da Rússia da guerra inter-imperialista. Venceu sobre a transferência do poder do Estado para os sovietes após um trabalho paciente e prolongado de conquistar as massas para tal fim. No entanto, obteve tão somente 60% dos votos na resolução que afirmava a necessidade de empreender a via da revolução socialista. E, finalmente, é derrotado no que se refere à resolução de mudança de nome do partido, já que o tradicional nome social-democrata significava, desde 1914, o conceito de traidores e defensores das burguesias nacionais em relação à I Guerra mundial dentro do movimento operário russo e internacional.[3]

O regime interno às vésperas da insurreição

Nas Teses de Abril, Lenin afirmava:
enquanto estivermos em minoria, desenvolveremos um trabalho de crítica e esclarecimento dos erros, defendendo ao mesmo tempo a necessidade de que todo o poder de Estado passe para os Sovietes de deputados operários, a fim de que, sobre a base da experiência, as massas se libertem dos seus erros.[4]
Ou seja, não estava na ordem do dia a tomada do poder. Cerca de quinze anos depois, Trotsky recordaria desse mês de abril no livro “Revolução e Contra-Revolução” na Alemanha com as seguintes palavras
Entretanto, o Partido chegou à insurreição de outubro, passando por uma série de degraus. Durante a demonstração de abril de 1917, uma parte dos bolcheviques lançou a palavra de ordem: “Abaixo o governo provisório”. O Comitê Central logo chamou à ordem os ultra-esquerdistas. Devemos, bem entendido, propagar a necessidade de derrubar o governo provisório; mas, não podemos ainda chamar as massas à rua por essa palavra de ordem, pois estamos ainda em minoria na classe operária. Se, nessas condições, conseguirmos derrubar o governo provisório, não o poderemos substituir e, por conseguinte, auxiliaremos a contra-revolução. É preciso explicar pacientemente às massas o caráter antipopular desse governo antes que soe a hora de sua derrubada. Tal foi a posição do Partido.[5]
Porém, cinco meses depois, refugiado na Finlândia devido às perseguições das jornadas de julho, Lenin escreve em 13 de setembro para o Comitê Central bolchevique, que se reuniria no dia 15 sem a sua presença
Depois de haver conseguido a maioria no interior dos sovietes das duas capitais (Petrogrado e Moscou), os bolcheviques podem e devem tomar o poder (…) A história jamais nos perdoará se não tomarmos o poder agora.[6] 
Novamente a fração bolchevique se vê engalfinhada numa brutal luta interna. Segundo Broué “Lenin está separado da maioria dos dirigentes bolcheviques por uma distância igual a que estava no mês de abril”. Mais adiante, as cartas de Lenin com esse conteúdo “não conseguem convencer o Comitê Central. Kamenev se pronuncia contrário às propostas de Lenin e exige que o partido tome medidas contra qualquer tentativa de insurreição. Trotsky é partidário da insurreição, porém pensa que esta deve ser decidida pelo congresso pan-russo dos sovietes. Por fim, a maioria dos membros do Comitê Central se inclina pela posição de Kamenev, que propõe que sejam queimadas as cartas de Lenin, deixando-as sem resposta.” Assim era a receptividade que a maioria do CC dava às posições da “direção histórica” do partido, a mais alta “autoridade”, ao mais “prestigiado” dos bolcheviques. [7]

Esse relato expõe, uma vez mais, a fratura aberta na fração bolchevique em torno da discussão sobre ir ou não à insurreição e, se sim, de que maneira. Aí se misturam questões de estratégia e tática sem precedentes. A luta interna extravasa por completo os limites do regime interno, do centralismo-democrático. Novamente a política ultrapassa a esfera organizativa. De modo fracional, fora dos marcos do regime interno, uma vez mais, Lenin começa a batalha política. A história mostraria se tinha ou não razão em sua ação. Afirma Broué
Lenin convence plenamente o jovem Smilga, presidente do soviet regional do exército, marinha e dos operários da Finlândia e começa a conspirar com ele contra a maioria do comitê central e o utiliza para ‘fazer propaganda dentro do partido’ em Petrogrado e em Moscou, examina com ele os mais diversos planos para por em marcha a insurreição e bombardeia o comitê central com uma série de cartas veementes que denunciam os “titubeios” e “vacilações” dos dirigentes.[8]
Em 29 de setembro, menos de um mês antes da revolução, Lenin “afirma que considera inadmissível que não se tenha respondida às suas cartas e, mais ainda, que o Pravda censure os seus artigos, pois isso tem toda uma aparência de ‘uma delicada alusão ao amordaçamento e um convite a se calar”[9]. Assim, ao insistir que suas posições sejam veiculadas no Pravda, Lenin se propõe organizar uma fração política pública e ameaça se demitir do Comitê Central de modo a poder, legalmente no sentido do regime interno, ter o direito de fazer propaganda nas fileiras do partido.

Afinal, em 10 de outubro, consegue, por 10 votos a 2, que o comitê central aceite sua proposta sobre a insurreição. Os dois votos contrários são de Zinoviev – braço direito de Lenin durante os anos anteriores – e Kamenev. Segundo Broué, estes dois ”desde o dia seguinte apelam contra a decisão do Comitê Central em sua ‘Carta sobre o momento atual’, dirigida às principais organizações do partido”.[10]

Uma vez mais esse episódio revela o funcionamento do regime interno da fração bolchevique, que extrapola o senso comum de todos os que viveram uma militância em partidos que se reivindicam leninistas. Naquele momento, todos os militantes da fração bolchevique são imediatamente convocados a participar da discussão e decidir os rumos do partido. Os bolcheviques não aprisionam as divergências na redoma do seu Comitê Central e, via o centralismo-democrático ou por fora dele, as posições divergentes chegam aos quadros partidários e, daí, às bases. Tanto é assim que alguns poucos dias depois, Zinoviev e Kamenev lançam suas posições contra a insurreição publicamente no jornal de Maximo Gorki. Lenin, em cartas enviadas ao partido, chama Zinoviev e Kamenev de “fura-greves” e exige a expulsão deles, o que não é aceito pelo comitê central após duras discussões.

Vitoriosa a insurreição, na tarde de 25 de outubro é inaugurado o Congresso dos Sovietes que tomaria o poder em suas mãos. Kamenev é proposto para ocupar a presidência do órgão representando o partido bolchevique. Em 1919, Zinoviev é eleito presidente do Comitê Executivo da Internacional Comunista, a recém-criada III Internacional.

Assim se forjava a unidade e a coesão do partido. Assim eram tratados os militantes que divergiam, nas ocasiões mais tensas e fundamentais, sobre as questões políticas mais transcendentais nos dias que abalaram o mundo.

Assim era a fração bolchevique.

Referencias Bibliográficas:

BROUÈ, Pierre. El partido bolchevique, Editorial Ayuso, 1973, Madrid

LENIN, Vladimir. Obras Escolhidas em três tomos, Edições Avante!, 1977, Lisboa https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/04_teses.htm (consultado dia 16 de Abril de 2015)

TROTSKY, Leon. Revolução e Contra-Revolução na Alemanha, Editora Lammert, 1968, Rio de Janeiro

BUCCHIONI, Enio. A propósito do regime interno dos bolcheviques antes de fevereiro de 1917, Blog Convergência, http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=4096 (consultado dia 16 de Abril de 2015)

Notas:
[1] Broué, 116
[2] Broué, 119
[3] Broué, 121
[4] Lenin – https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/04_teses.htm
[5] Trotsky, 71
[6] Broué, 130
[7] Broué, 133
[8] Broué, 131
[9] Broué, 132
[10] Broué, 132