domingo, 29 de dezembro de 2013

Abram alas pro morro! Salve a música popular brasileira! Alcione e Leci Brandão cantam "O morro não tem vez"

Que tal um pouco mais de espaço pro morro? Que tal Leci Brandão e Alcione cantando "O morro não tem vez"? Salve a música popular brasileira!



O morro não tem vez
E o que ele fez já foi demais
Mas olhem bem vocês
Quando derem vez ao morro
Toda a cidade vai cantar

Samba pede pasagem
O morro que só estar
Abram alas pro morro
Tamborim vai falar
É 1, é 2, é 3, é 100
São 1000 a batucar
O morro não tem vez
Quando derem vez ao morro
O mundo inteiro vai cantar
Samba pede passagem
O morro quer se mostrar

Abram alas pro morro
Tamborim vai falar
É 1, é 2, é 3, é 100
É 100 a batucar
O morro não tem vez
Mas se derem vez ao morro
O mundo inteiro vai cantar
Vai cantar, vai cantar

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

A voz brasileira silenciada no "The Voice BraZil"


Quase trinta milhões de votos deram ao cearense Sam Alves o título de "A voz do Brasil" no novo "reality show" da TV brasileira. Ganhou Sam, aliás "Sæm" segundo os próprios pais, com aquela pronuncia bem americanizada com o "a" pendendo pro "e".  Pois é, ganhou "Sæm", perdeu a música brasileira. Isso mesmo. A disputa foi inclusive inusitada. Enquanto o grande vencedor interpretou “Hallellujah”, canção do canadense Leonard Cohen, seus concorrentes cantaram Tim Maia ("Me dê motivo"), Dominguinhos ("De volta pro aconchego") e Renato Russo ("Monte Castelo"), três monstros sagrados da música e da voz brasileira, todos batidos pelos gritos estridentes, ainda que afinados, do cearense.

Diferente de sua primeira temporada, onde Ellen Oléria, uma mulher, negra, lésbica e musicalmente brasileiríssima arrastou o título de "a Voz", desta vez o "The Voice" brasileiro meio que atingiu seu apogeu, consagrando um homem, branco, cearense ainda que só de feto, enquanto que de fato mesmo, é estadunidense em todos os sentidos. E quando falo em todos os sentidos, não me refiro unicamente à pessoa do artista, mas em especial ao seu próprio cantar, bem no estilo Whitney Huston, e completamente importado lá das terras do norte e massificado pela grande industria fonográfica.

A cada quinta-feira um pouco da nossa brasilidade foi sendo silenciada. E aqui não me refiro sequer ao cantar em inglês, nada disso. É possível cantar em português e ainda assim não cantar o Brasil. "Sæm" fez isso, por exemplo, em seu "Hallelujah". Aliás, façamos justiça, não só ele. Da mesma forma, é possível cantar em inglês e ainda assim cantar muito de nossa identidade, a banda Sepultura, por exemplo faz isso.

Insisto: essa não é uma questão de forma. É de conteúdo.

No "The Voice" a voz do Brasil com toda sua riqueza cultural foi sendo calada, semana atrás da outra. A exclusão da potiguar Khristal foi um enorme acinte. A da carioca e sambista Gabby Moura deixou de novo o "morro sem vez". A do cearense Marcos Lessa e sua voz que nos remetia a Emilio Santiago, foi de uma frustração inenarrável. E poderíamos citar muitos outros que cantaram o samba, o rock, o sertanejo, a MPB, e muito mais. Por fim, veio a derrota de Lucy Alves, em uma de suas apresentações mais emocionantes, e que quase que inevitavelmente me trouxe a mente a ideia de que levamos uma goleada do time adversário e que ainda por cima ao celebrar seus gols pediu silêncio pra nossa torcida.

É claro que nossa voz e nossa arte é muito mais que um programa da Rede Globo. Mas é bom que estejamos preparados. O resultado do segundo "The Voice" é meio que só uma anunciação. Muitos "Sæms" ainda estão por vir.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Se tivesse realmente vencido, Mandela não seria apresentado como herói universal (texto de Slavoj Žižek)(*)


Nas últimas duas décadas da vida, Nelson Mandela foi festejado como modelo de como libertar um país do jugo colonial sem sucumbir à tentação do poder ditatorial a sem postura anticapitalista. Em resumo, Mandela não foi Robert Mugabe, e a África do Sul permaneceu democracia multipartidária com imprensa livre e vibrante economia bem integrada no mercado global e imune a horríveis experimentos socialistas. Agora, com a morte dele, sua estatura de sábio santificado parece confirmada para toda a eternidade: há filmes sobre ele (com Morgan Freeman no papel de Mandela; o mesmo Freeman, aliás, que, noutro filme, encarnou Deus em pessoa). Rock stars e líderes religiosos, esportistas e políticos, de Bill Clinton a Fidel Castro, todos dedicados a beatificar Mandela.

Mas será essa a história completa? Dois fatos são sistematicamente apagados nessa visão celebratória. Na África do Sul, a maioria pobre continua a viver praticamente como vivia nos tempos do apartheid, e a ‘conquista’ de direitos civis e políticos é contrabalançada por violência, insegurança e crime crescentes. A única mudança é que onde havia só a velha classe governante branca há agora também a nova elite negra. Em segundo lugar, as pessoas já quase nem lembram que o velho Congresso Nacional Africano não prometera só o fim do apartheid; também prometeu mais justiça social e, até, um tipo de socialismo. Esse CNA muito mais radical do passado está sendo gradualmente varrido da lembrança. Não surpreende que a fúria outra vez esteja crescendo entre os sul-africanos pretos e pobres.

A África do Sul, quanto a isso, é só a mesma versão repetida da esquerda contemporânea. Um líder ou partido é eleito com entusiasmo universal prometendo “um novo mundo” – mas então, mais cedo ou mais tarde, tropeçam no dilema chave: quem se atreve a tocar nos mecanismos capitalistas? Ou prevalecerá a decisão de “jogar o jogo”? Se alguém perturba esse mecanismo, é rapidamente “punido” com perturbações de mercado, caos econômico e o resto todo. Por isso parece tão simples criticar Mandela por ter abandonado a perspectiva socialista depois do fim do apartheid. Mas ele chegou realmente a ter alguma escolha? Andar na direção do socialismo seria possibilidade real?

(...) Marx disse (...) em sua fórmula bem conhecida que, no universo da mercadoria, “as relações entre pessoas assumem o disfarce de relações entre coisas”.

Na economia de mercado, acontece de relações entre pessoas aparecerem sob disfarces que os dois lados reconhecem como liberdade e igualdade: a dominação já não é diretamente exercida e deixa de ser visível como tal. (...) É preciso ter em mente que a grande lição do socialismo de estado foi, sim, que a abolição direta da propriedade privada e a regulação das trocas pelo mercado, se não vierem acompanhadas de formas concretas de regulação social do processo de produção, acabam sempre, necessariamente, por ressuscitar relações diretas de servidão e dominação.

Se apenas se extingue o mercado (inclusive a exploração do mercado), sem substituí-lo por uma forma própria de organização comunista da produção e das trocas, a dominação volta como uma vingança, e com a exploração direta pelo mercado.

A regra geral é que, quando começa uma revolta contra regime opressor semidemocrático, como aconteceu no Oriente Médio em 2011, é fácil mobilizar grandes multidões com slogans que só se podem descrever como “formadores de massa”: pela democracia, contra a corrupção, por exemplo.

Mas adiante, quando nos vamos aproximando das escolhas mais difíceis, quando nossa revolta é vitoriosa e alcança o objetivo direto, logo nos damos conta de que o que realmente nos atormentava (a falta de liberdade pessoal, a humilhação, a corrupção das autoridades, a falta de perspectiva de, algum dia, chegar a ter uma vida decente) rapidamente troca de roupa e reaparece sob um novo disfarce.

A ideologia governante mobiliza aqui todo o seu arsenal para nos impedir de chegar àquela conclusão radical. Põem-se logo a dizer que a liberdade democrática implica responsabilidades; que a liberdade democrática tem seu preço; que ainda não estamos plenamente amadurecidos, se esperamos demais da democracia.

Assim, rapidamente, passam a nos culpar, nós mesmos, pelo nosso fracasso: numa sociedade livre – é o que nos dizem – todos somos capitalistas que investimos na nossa própria vida; e temos de alocar mais dinheiro para a educação do que para nossas festas e noitadas e lazer. Que se não fizermos assim, nossa democracia não terá sucesso.

Num plano diretamente mais político, a política externa dos EUA elaborou detalhada estratégia para controle de danos: basta converter o levante popular em restrições capitalistas-parlamentares palatáveis. Isso, precisamente, foi feito com sucesso na África do Sul, depois do fim do regime de apartheid; foi feito nas Filipinas depois da queda de Marcos; foi feito na Indonésia depois da queda de Suharto e foi feito também em outros lugares

Nessa precisa conjuntura, as políticas radicais de emancipação enfrentam o seu maior desafio: como fazer avançar as coisas depois de acabado o primeiro estágio de entusiasmo, como dar o passo seguinte sem sucumbir à catástrofe da tentação “totalitária”, em resumo: como avançar além de Mandela, sem se converter num Mugabe.

Se quisermos permanecer fiéis ao legado de Mandela, temos de deixar de lado as lágrimas de crocodilo das celebrações e nos focar em todas as promessas não cumpridas infladas sob sua liderança e por causa dela. Assim se verá facilmente que, apesar de sua indiscutível grandeza política e moral, Mandela, no fim da vida, era também um velho triste, bem consciente de que seu triunfo político e sua consagração como herói universal não passavam de máscara para esconder derrota muito amarga. A glória universal de Mandela é também prova de que ele não perturbou a ordem global do poder.

(*) Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu, no redecastorphoto