segunda-feira, 30 de novembro de 2015

"Centralismo democrático: entre a pedra e o caminho" (texto de ​Sérgio Domingues)


Sérgio Domingues é sociólogo e funcionário da UFRJ, colaborador do Núcleo Piratininga de Comunicação fundado pelo saudoso Vito Giannotti e militante do PSOL. É de sua autoria o texto "Centralismo democrático: entre a pedra e o caminho" que divulgamos aqui neste post que versa sobre uma das polêmicas mais recorrentes e pulsantes no que se refere a organização dos revolucionários. Como fruto dos anos do tacão stalinista, o centralismo democrático, foi via de regra demonizado por várias correntes, agrupamentos e ativistas. E não é pra menos. Ainda hoje, é possível ver organizações que se afirmam trotskistas, o que deveria ser sinônimo de anti-stalinistas, aplicando um tipo de centralismo que apesar da alcunha de democrático, silencia e sufoca diferenças em seu seio. Algo absolutamente diferente da experiências do centralismo-democrático aplicado por Lênin, Trotsky e seus companheiros, tanto durante a ditadura czarista, como os governos pós-fevereiro de 17 e até mesmo o período de guerra civil pós-outubro.

O texto de Sérgio de Domingues é uma importante contribuição que começa com um exemplo muito didático sobre a necessidade de remover uma grande pedra do caminho, o que em nosso caso como o próprio autor relata, é o capitalismo.

Boa leitura.

Centralismo democrático: entre a pedra e o caminho


Adelmo Genro Filho costumava explicar a necessidade de adotar o centralismo democrático com uma imagem didática. Trata-se de imaginar um grupo de pessoas que encontra uma grande pedra impedindo que sigam seu caminho. Se cada pessoa empurrar a pedra para um lado diferente, não vão conseguir movê-la. Será preciso que entrem num acordo, primeiro. Discutam e decidam com que força, ferramentas e em que direção o obstáculo deve ser afastado. Só depois disso devem, todas, iniciar a ação. Se ela se provar errada, voltam a discutir e fazem nova tentativa.

No caso de um partido socialista a pedra é a exploração da sociedade capitalista, que temos que superar, destruindo seus pontos de apoio. O movimento unitário é necessário porque os pontos de apoio da sociedade capitalista também são centralizados. Os capitalistas concorrem entre si ferozmente. Disputam postos no poder político e financeiro de modo selvagem. Mas, diante da menor ameaça a seus interesses. Diante de qualquer risco para seus lucros, suas propriedades, seu poder político, eles se unem. Esquecem suas diferenças e as ofensas que trocaram. Voltam-se unidos contra a ameaça. Geralmente, representada pela luta dos trabalhadores. E estes não podem se dar ao luxo de permanecer dispersos, enquanto seu inimigo está unido e forte.

Mas as coisas não são tão simples. Quem acompanhou a história do movimento socialista do século passado sabe que o centralismo democrático está longe de ser consenso entre as forças anticapitalistas.

Voltando a usar a imagem da pedra, o problema surge quando a maioria faz força empurrando a rocha, enquanto alguns ficam só olhando. Ou pior, sobem na pedra e ficam dando ordens lá de cima: “Mais pra direita, mais pra esquerda”. “Tem que usar mais força. Desse jeito, não vai dar”. Falam muito e não fazem nada. É o que a tradição socialista costuma chamar de centralismo burocrático. Ou seja, alguns conseguem se instalar em posições de comando. Em posições administrativas. Em confortáveis gabinetes e escritórios. Dão ordens, escrevem tratados, fazem teorias. Enviam tudo, lá de cima, para que a maioria, cá embaixo, execute. Está errado, claro. Nenhum socialista honesto pode aceitar isso.

No entanto, como evitar que o centralismo democrático se transforme em centralismo burocrático? Afinal, aparentemente, na grande maioria dos casos em que o centralismo democrático foi utilizado como forma de organização, ele se transformou em sua versão burocrática. Daí, a justa desconfiança de muitos camaradas combativos e de luta em relação ao centralismo.

O que fazer com Lênin?

Comecemos pelo começo. O primeiro a usar o conceito de centralismo foi Lênin. Mas, antes dele, o conceito já funcionava de alguma forma. É o caso das regras da Liga Comunista e do estatuto da Associação Internacional dos Trabalhadores, da época de Marx. Em ambos, estava prevista a necessidade de que seus membros agissem de forma unitária. Uma vez que uma tarefa fosse votada e decidida, todos deveriam agir juntos para cumpri-la.

Mas há experiências ainda mais antigas. Desde as primeiras ações sindicais, o centralismo também estava presente de alguma forma. Numa assembléia, podem se apresentar posições contrárias ou favoráveis a uma greve. Porém, uma vez decidido o início de uma paralisação, todos devem fazer a greve. Quem não fizer, é traidor. É fura-greve.

Isso acontece porque a classe operária é dividida. Dividida em ramos de trabalho diferentes. Dividida pela competição por um salário melhor. Dividida por preconceitos de cor, sexo, religião. A isso, as forças socialistas precisam responder com unidade. Com centralismo. Se não, não dá pra fazer nem uma greve.

A diferença é que Lênin teorizou o centralismo democrático para um partido revolucionário. Uma organização que pretende enfrentar radicalmente os exploradores. Algo que quer dar a batalha final. Não ficar no meio do caminho e ver a classe dominante retomar terreno.

Em 1904, Lênin escreveu algo que faz arrepiar os cabelos até de seus mais entusiasmados seguidores. Criticando os mencheviques disse: "a idéia básica do camarada Martov... é [produto] justamente de seu ‘democratismo’. A idéia da construção do partido de baixo para cima. Minha idéia, ao contrário, é o ‘burocratismo’, no sentido de que o partido deve ser construído de cima para baixo. Do congresso para a organização individual do partido." (Lênin, Obras [em russo], VII, pp 365-366 – citado por Toni Cliff, em sua biografia sobre Rosa Luxemburgo).

Assustador, sem dúvida. Tais posições ficaram ainda mais famosas em “O que fazer?” e “Duas táticas da social-democracia na revolução proletária”, também de Lênin. Mas, o revolucionário russo não era homem de posições congeladas. Em 1905, nos debates de preparação para o 3o congresso do partido, disse que seus pontos de vistas organizativos não eram universais: "Em condições políticas de liberdade, nosso partido pode e deve refazer inteiramente a regras...". É que Lênin pensou aquelas regras para um momento em que as condições políticas da Rússia eram as de uma ditadura terrível. Já não era mais o caso, após a revolução de 1905.

E quando Rosa Luxemburgo criticou sua concepção de centralismo aparecida em “O que fazer?”, Lênin respondeu que tratava-se de uma posição superada. Tanto assim que, em 1920, não gostou da notícia de que “O que fazer?” seria traduzido para outros idiomas. Pediu para que a edição fosse acompanhada por comentários claros sobre as condições em que o livro foi escrito.

Outro exemplo aconteceu quando a 3a Internacional Comunista discutia seus estatutos, em 1919. Lênin se opôs a propostas que considerava “muito russas” e exageravam a centralização. Ele dizia que o excesso de centralização não se adaptava às condições da Europa ocidental.

De qualquer maneira, a concepção de centralismo democrático permaneceu. Não como algo feito de cima para baixo. Ao contrário, com o máximo de democracia. Em outro de seus livros, isso ficou mais claro. Trata-se de “O Estado e a Revolução”. Lançado às vésperas da revolução de 1917, o livro foi escrito por quem pressentia a tomada do poder. A necessidade de pensar como funcionaria um Estado governado pelos trabalhadores. Por isso, é inspirado na única experiência parecida com isso, até então. A Comuna de Paris, de 1871. No livro, Lênin diz que a democracia dos trabalhadores tem que funcionar na base da mais ampla e intensa discussão antes de qualquer decisão. Como na Comuna, as funções de legislar, governar, julgar, executar, não podem ser separadas. Teoria e prática têm que fazer parte das tarefas cumpridas por todos. E o Estado precisa ir se enfraquecendo e não se fortalecendo. Pois já não tem serventia à medida que as classes vão desaparecendo. Como vimos, as posições de Lênin mudaram. Mas na verdade, o centralismo democrático nunca foi uma fórmula rígida. Sempre foi uma maneira de combinar ampla discussão com ação unitária. Sempre levando em conta as condições concretas da realidade. Quando isso se transformou em uma fórmula é que tornou-se centralismo burocrático. A insistência na variedade de formas com que o centralismo democrático se manifesta sempre esteve presente nas obras dos marxistas.

Trotsky, Gramsci e a tentação de subir na rocha

Em sua obra “Sobre o centralismo e o Regime”, Trotsky chama a atenção para o fato de que centralismo e democracia nunca estão em uma proporção exata: “Quando o problema é a ação política, o centralismo domina a democracia. A democracia retoma seu lugar novamente quando o partido precisa examinar criticamente suas próprias ações. O equilíbrio entre democracia e centralismo se estabelece na luta real. Às vezes, este equilíbrio é violado e de novo restabelecido”.

Gramsci tratou do tema da mesma forma. Em “O moderno príncipe”, ele deu o nome de “centralismo orgânico” ao centralismo democrático. Vejam o que ele disse: “Esta ‘organicidade’ somente pode ser encontrada no centralismo democrático. Algo que seria, por assim dizer, um “centralismo” em movimento. Ou seja, uma contínua adaptação da organização ao movimento real. Um encontro dos impulsos vindos de baixo com as ordens a partir de cima. Um contínuo bombeamento de elementos vindos da base partidária para dentro da moldura sólida em que ficam as lideranças e que assegura a permanente e regular acumulação de experiências. O centralismo democrático é ‘orgânico’ porque dá conta do movimento. E este não passa do modo orgânico como a realidade histórica se revela e não se solidifica mecanicamente na forma de burocracia. Ao mesmo tempo, dá conta daquilo que é relativamente estável e permanente, ou que, pelo menos, se move em uma direção mais facilmente previsível...”. Sem dúvida, são visões dinâmicas e dialéticas da organização partidária.

Ainda assim, são legítimas as preocupações de quem vê com desconfiança o centralismo democrático. Este texto não tem a intenção de acabar com isso. Ao contrário. Tudo o que foi dito não deve servir para desculpar Lênin, Trotsky e outros por erros ou tragédias que vieram a ser cometidos em nome do centralismo. Mas, também não podemos trancar o debate com a recusa de algo que não pode ser recusado: a busca de formas de criar e manter a unidade dos trabalhadores em luta.

A verdade é que não há como garantir isso de forma pura. Vivemos numa sociedade hierárquica, em que alguns mandam e muitos obedecem. Alguns pensam, a maioria executa. Com o tempo, essas diferenças somente se aprofundam. Exercem uma pressão constante e esmagadora sobre uma organização que pretende ser o contrário disso. Obrigam a que esta organização reaja de forma quase espelhada. Respondendo ao autoritarismo burguês com o centralismo dos trabalhadores. À repressão deles com nossa autodefesa. A idéias conservadoras e autoritárias com valores revolucionários e libertários. Este espelho está sempre tentando distorcer a luz autoritária que vem de fora. Transformá-la em imagens do que devem ser as relações humanas. Nem sempre isso acontece. É uma luta dura, mas que precisa ser feita.

Por mais que tenhamos divergências, a rocha continua no meio do caminho. A pressão para que alguns parem de empurrar a pedra e passem a dar ordens é grande. Se cederem à tentação, aí, eles passam a fazer parte do problema e não da solução. Temos que ficar atentos a isso. Nesse caso, quem está sobre a pedra tem que ser removido junto com ela.

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