sábado, 9 de agosto de 2014

A libertação de Hideki e Lusvargui – ou o nescau terrorista & a justiça playba (artigo fantástico de @lex_lilith)


Após 45 dias de encarceramento absolutamente absurdo, Fábio Hideki e Rafael Lusvarghi foram finalmente libertados na última quinta-feira, dia 07 de agosto. Por ocasião de sua libertação, o jornalista e escritor Alex Antunes publicou em seu blog no Yahoo!Notícias um excelente artigo com o título "A libertação de Hideki e Lusvargui – ou o nescau terrorista & a justiça playba". Antunes não se contenta em somente questionar o aprisionamento absurdo dos ativistas, enxergado mais do que corretamente por muitos como a manifestação de estado de exceção, para nosso deleite ele examina o papel da justiça, ou melhor dizendo, do juiz por trás da sentença e seus argumentos estapafúrdios como o de qualificar os rapazes de esquerda caviar comprovando a completa ignorância do magistrado.

Leitura recomendadíssima.

A libertação de Hideki e Lusvargui – ou o nescau terrorista & a justiça playba


A manutenção da prisão dos ativistas Fábio Hideki e Rafael Lusvarghi foi um escândalo que durou 45 dias. Foram presos em 23 de julho, após uma manifestação contra a copa em São Paulo, e indiciados como black blocs, pela suposta posse de materiais explosivos, entre outras acusações.

Acontece que havia inúmeras testemunhas em contrário. Desde o padre Júlio Lancelotti e outros presentes, que viram e filmaram a polícia vasculhando a mochila de Hideki, já dentro do Metrô, até o fato incontestável de que os dois não se conheciam (o que punha por terra a acusação de que fariam parte da “mesma organização criminosa”).

Hideki é estudante e funcionário da USP. Pacifista e vegetariano (não na prisão, onde sua dieta foi desrespeitada), não é adepto de práticas violentas. Já o professor de inglês Lusvarghi foi preso sem camisa, de kilt. Gosta de games, de vikings e de estratégia militar; já foi PM por curtos períodos, em São Paulo e no Pará, e tentou se alistar na Legião Estrangeira da França e no exército russo, tendo viajado bastante pelo exterior.

Ao contrário de Hideki, que é um ativista de trajetória mais ou menos padrão, Lusvarghi é um aventureiro. De certa forma exemplificam a variedade de tipos que foram para as ruas protestar desde as manifestações de junho de 2013 – mas certamente não têm nada em comum, e não configuram nenhum “modus operandi”.

Ou melhor, têm algo em comum sim. Nesta segunda-feira soube-se que a perícia da polícia (do Gate – Grupo de Ações Táticas Especiais e do IC – Instituto de Criminalística) determinou que os objetos que supostamente portavam não eram explosivos, e não tinham qualquer potencial agressivo ou destrutivo.

Uma garrafinha de nescau estaria com Lusvarghi, com tampa de papel presa por um elástico, e uma estranha lata estaria com Hideki – um frasco do fixador de corantes para tecidos Fix com um barbante passando por dentro. Fazem um belo aparato de guerrilha urbana, junto com a cândida e o pinho sol do morador de rua Rafael Vieira, que foi condenado a cinco anos de prisão no Rio de Janeiro, por carregá-los durante as manifestações do ano passado. Lembra as trapalhadas da ditadura militar. E seria ridículo, se não se tratasse da destruição da vida de cidadãos. As recentes investigações da polícia do Rio flagraram citações a um certo suspeito, Bakunin, que passou a ser investigado, como se estivesse vivo e no Brasil. O episódio se parece com as apreensões por engano, durante a ditadura, do romance A Capital, de Eça de Queiroz.

O advogado de Hideki, Luiz Eduardo Greenhalg, entrou já na terça-feira com um novo pedido de libertação. Duas questões se colocam, para além da grande questão da ilegalidade dessa prisão política, baseada em (ex) provas fraudadas (aqui neste site estão todas as informações sobre Hideki).

A primeira: porque um laudo da própria polícia se prestaria a invalidar as provas materiais – principalmente se elas foram plantadas? Uma teoria conspiratória mas atraente é a de que o governador Alckmin sabe que se a perícia “encontrasse” materiais explosivos, a percepção popular seria de que as provas e o laudo foram uma grande armação. Melhor dar um freio de arrumação no caso.

A outra é a estranha manifestação do juiz Marcelo Matias Pereira, da 10ª. Vara Criminal de SãoPaulo, do dia 01 de agosto, sexta-feira (antes do laudo, portanto), que naquela ocasião negou o pedido de revogação da prisão preventiva, mantendo Hideki e Lusvarghi presos. Escreveu o juiz em um trecho: “Além de descaradamente atacarem o patrimônio particular de pessoas que tanto trabalharam para conquistá-lo, sob o argumento de que são contra o capitalismo, mas usam tênis da Nike, telefone celular, conforme se verifica nas imagens, postam fotos no Facebook e até utilizam uma denominação grafada em língua inglesa, bem ao gosto da denominada esquerda caviar”.

Denominada... por quem, excelentíssimo senhor doutor juiz Pereira? A expressão “esquerda caviar” (que o blogueiro da Veja Rodrigo Constantino costuma usar), além de trazer um indevido conteúdo ideológico e fora dos autos para um despacho oficial, ainda é empregada, no caso, de maneira errada.

“Esquerda caviar” (“gauche caviar” na França, e seus similares “champagne socialist”, na Inglaterra, “limousine liberal” e “radical chic” nos EUA, “salonkommunist” ou comunista de salão na Alemanha, e outros que a Wikipedia lista) diz respeito à época contracultural em que o socialismo e as lutas civis ficaram chiques em alguns ambientes (de 1968 em diante).

O termo “radical chic” foi cunhado por Tom Wolfe em um artigo de 1970, "Radical Chic: That Party at Lenny's", que falava de uma festa do maestro Leonard Bernstein com seus amigos da elite culta para obter fundos para os Panteras Negras. Na França, o similar “caviar gauche” serviu para designar socialistas de hábitos poucos sóbrios, a começar por François Miterrand, presidente entre 1981 e 1995.

Ou seja, o uso constantino da expressão é uma distorção local (ainda mais) moralista. Que o blogueiro vende e que o ilustre juiz aparentemente comprou, de maneira quase inocente. A noção de que ativistas não deveriam calçar tênis de marca, postar no Facebook e usar termos em inglês (como quase todos os jovens fazem) parece esperar que os manifestantes atuais se comportem como proletários comunas caricatos do século passado. Sendo que os próprios proletários DESTE século já estão todos no Facebook. Constantino e a direita blogueira têm que decidir se a esquerda ortodoxa é arcaica e ultrapassada, como gostam de dizer, ou não.

Acontece que o juiz Pereira é o mesmo que inocentou Danilo Gentili de uma acusação de racismo, quando o “humorista” ofereceu bananas a um negro (o empresário Thiago Ribeiro), em 2012. E o desvio de significado começa a fazer sentido. Gentili é amigo de Constantino. Não espantam juízes conservadores – é um calo da profissão. Mas não se espera da justiça que ela se expresse como um playboy fanfarrão.

Na tarde de hoje, quinta-feira, diante do novo pedido de libertação com base no laudo, e da repercussão de sua sentença anterior, o próprio juiz Pereira finalmente mandou soltar Hideki e Lusvarghi. Um mês e meio de estado de exceção, baseado em coisa nenhuma, a não ser na determinação de reprimir a livre manifestação política.

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