sábado, 5 de maio de 2018

Quem tem medo da Greve Geral? (*)



Está marcada para o próximo 28 de abril a primeira greve geral brasileira do século XXI, para ser mais exato, a primeira greve geral dos últimos 26 anos. Todo ativista do movimento sindical e organizado surgido pós-1991 nunca viu, nem participou de algo parecido, só ouviu falar. Greves vimos aos montes nesses últimos anos, em especial por categorias e algumas delas até nacionalizadas, mas uma greve que se proponha a parar várias categorias do setor público e privado ao mesmo tempo em todo o país pelas mesmas bandeiras, só em sonhos ou nas palavras de ordem inaplicáveis levantadas por algumas organizações.
Passado tanto tempo sem nada parecido é normal que inclusive se duvide da capacidade tanto de fazer acontecer como do possível resultado positivo que poderia vir a partir daí. E não é pra menos. Desde 1991, já se foram 12 anos de neoliberalismo e reestruturação produtiva passando por Collor, Itamar e FHC somados a outros 13 anos de conciliação de classes de Lula e Dilma, e já quase um ano de rapina antinacional, antipopular e em especial anti-operária do golpista Michel Temer. Isso tudo tem um peso violento sobre o imaginário coletivo das brasileiras e brasileiros e também sobre a cultura e tradição das lutas de classe, e como não poderia deixar de ser, sobre a própria consciência de classe. Esse não é um pequeno detalhe. Não seria possível tentar fazer perder direitos e conquistas sociais das classes trabalhadoras brasileiras se já não tivessem sido perdidos valores e consciência de classe conquistados a duras penas.
Em recente pesquisa qualitativa realizada pela Fundação Perseu Abramo[1] sobre o imaginário social das periferias de São Paulo, identificou-se que os paulistanos não se identificam com a rivalidade entre ricos e pobres, esquerda versus direita ou em burguesia versus proletariado; que é possível vencer na vida por mérito próprio sem interferência do Estado tal como Lula, Silvio Santos ou Dória; e que o grande inimigo da população é o próprio Estado. As esferas do comunitário e do coletivo, e com elas o próprio senso de solidariedade foram perdidos. O individualismo e a meritocracia fazem parte dos valores da população das periferias da Grande São Paulo e que em certa medida é um grande espelho do que pensa e do que é a periferia e a classe trabalhadora em todo Brasil.
Esse cenário desastroso tem sido terreno fértil para proliferação do neopentecostalismo com sua “teologia da prosperidade” e também dos movimentos liberais-conservadores brasileiros. Mas para nada está dito que esse sertão não possa virar mar. A classe operária quando entra em luta aprende muito rápido. Sim, estamos imensamente atrasados e desarmados mas as medidas antipopulares desse governo são tantas e tamanhas que empurram a classe para a resistência. A essa altura Temer já é o presidente mais impopular da história dos presidentes; mesmo sem entender os meandros técnicos da contrarreforma previdenciária a população sabe que ela é ruim para os de baixo; o governo até então quase que imbatível já não possui base para a aprovação da PEC 287 com somente 101 votos[2] confirmados dos 308 necessários e desde que sejam feitas mudanças na proposta original do governo. É preciso enxergar que há mudanças nos ventos da luta de classe e que as lutas de março foram a base para essas mudanças. Se março, com suas manifestações de ruas e paralisações foi capaz de tais mudanças, imaginemos o que não será capaz de fazer a greve geral de 28 de abril.
Se vale a experiência histórica, em julho de 1917, tivemos a primeira greve geral brasileira que no decorrer de um mês inteiro mudou e moldou as relações de trabalho para sempre. A burguesia brasileira nasceu escravocrata e se ainda hoje mantém tais valores, imaginemos como não era há 100 anos, quando mal se faziam 30 anos da abolição. A ideia de pagar salários aos trabalhadores negros recém libertos era tão repugnante à elite brasileira de então que apelou-se à importação de trabalhadores europeus, mas ainda assim, tentando manter com esses trabalhadores a mesma relação de superexploração e humilhação que tinha para com os homens, mulheres e crianças escravizados por séculos a fio. Os relatos de trabalhadores italianos tratados na base do açoite ao reclamar da falta de pagamentos nas fazendas de café são muitos[3]. A jornada de trabalho diária de 12 a 16 horas contrastava com a jornada inglesa de 8 horas diárias reivindicada pelo movimento operário europeu desde 1866[4] e até mesmo conquistada em muitos países e categorias mundo afora. O trabalho de menores de 14 anos, o trabalho noturno de mulheres, a perseguição e prisão de grevistas, a proibição de sindicatos, os salários aviltantes e o próprio atraso de meses desses salários foram a base para a primeira greve geral no país. A partir dela, os trabalhadores se colocaram em movimento de tal maneira que o Estado brasileiro se viu obrigado a ceder cada vez mais e mais. Nesse contexto, é bom notar que a Consolidação das Leis Trabalhistas em 1943 nada mais foi que a criação de um código único que condensasse o conjunto de conquistas que os trabalhadores vinham arrancando desde sua grande greve de 1917[5].

Nos anos 1980, tivemos não só uma mas quatro grandes greves gerais. A primeira delas em 1983 durante o governo do general João Batista Figueiredo. Três milhões de trabalhadores, entre eles metalúrgicos, bancários, metroviários, professores e servidores públicos atenderam ao chamada da então comissão pró-CUT e paralisaram suas atividades em solidariedade à greve nacional dos petroleiros duramente reprimida pelo governo federal. A greve consolidou a possibilidade de fundação da Central Única dos Trabalhadores e acelerou o processo de redemocratização do país e da própria derrota do regime militar.

As greves gerais de 1986 e 1987 que se levantaram contra o governo Sarney, a carestia e seus planos cruzados tiveram também um impacto poderosíssimo sobre a recém inaugurada democracia brasileira. Em dezembro de 1986, vinte e cinco milhões de trabalhadores paralisaram suas atividades. Em agosto de 1987, o contingente foi menor mas o impacto foi igualmente poderoso. Foi nesse cenário de grandes greves operárias que ajudaram a derrubar Figueiredo e a imobilizar Sarney que foi promulgada em 1988, a chamada Constituição Cidadã. Os congressistas constituintes, em sua imensa maioria, homens e brancos, representantes diretos da mesma burguesia que nunca rompeu de fato com sua essência escravocrata, aprovaram entre outras coisas que racismo no Brasil é crime inafiançável e que as mulheres em função da dupla jornada têm o justo direito de aposentar-se mais cedo. É no mínimo ingenuidade acreditar que esses senhores não foram pressionados pelo ambiente de ascenso operário dos 1980.

Após a vitória arrancada na Constituinte de 1988 com a liberdade sindical, o direito de greve e a manutenção dos direitos conquistados desde a primeira greve geral brasileira consolidados na CLT, o movimento operário do final da década de 1980 deu um salto. Segundo dados do DIEESE no período de janeiro a agosto de 1989 ocorreram 1346 paralisações de trabalhadores, enquanto no mesmo período em 1988, as paralisações haviam sido 292. As greves e paralisações mais que quadruplicaram. Diante da crise econômica e do risco de hiperinflação o governo Sarney tentou jogar nas costas da classe trabalhadora o peso da crise com o chamado Plano Verão que propunha congelar os salários dos trabalhadores. A resposta foi a maior greve geral de nossa história paralisando 35 milhões de brasileiros nos dias 14 e 15 de março de 1989. O ascenso do movimento social era indiscutível.

No caminho do ascenso, porém, houve uma eleição. A primeira eleição direta para presidente da república depois de quase três décadas do pleito que levou Jânio Quadros e João Goulart à presidência e vice-presidência da república respectivamente, em 3 de outubro de 1960. As ilusões democráticas eram praticamente intransponíveis. O PT fundado somente 9 anos antes levou ao segundo turno a maior figura pública que o movimento operário brasileiro criara e por muito pouco, não fez em 1989 o primeiro presidente operário de sua história. O impacto tanto da derrota eleitoral de Lula como de sua quase vitória foi avassalador e deu início ao processo de refluxo do movimento operário. A derrota teve um peso fundamental sobre as massas que saíram desmotivadas e a quase vitória impactou, em especial, a vanguarda do movimento operário que abraçou com todas as forças o projeto de fazer Lula presidente, construindo o chamado “modo petista de governar”. Em 1991, nossa última greve geral[6], essa contra as medidas do governo Collor de Melo, mobilizou 19,5 milhões de trabalhadores e ainda que tenha feito parte do crepúsculo do intenso movimento de greves gerais dos 1980[7], de algum modo também deixou sua marca em construir as bases para o Fora Collor de 1992.
Agora quando nos aproximamos da greve geral de 28 de abril não temos o direito de deixar escapar essa oportunidade de nossas mãos. Partimos de muita incompreensão, desconfiança e deseducação política, mas o que fizermos agora para garantir o sucesso do 28A poderá entrar para a história do movimento operário brasileiro. Talvez, só talvez, poderemos estar entre os homens e mulheres que em abril de 2017 pararam o Brasil e construíram o caminho não só para derrotar as abomináveis contrarreformas trabalhista e previdenciária, mas que também criaram as condições de colocar o ponto final no desgoverno de Temer e suas corja de bandidos. Não estamos lidando com nenhuma certeza absoluta e hoje por hoje a correlação de forças segue favorável ao governo golpista. Até mesmo por isso é preciso dedicar-se com afinco nos próximos dias a consolidar e fazer acontecer o 28 de abril. Temos absolutamente todos os motivos para afirmar que definitivamente, nós, trabalhadoras e trabalhadores não estamos entre os que têm a temer e muito menos a perder com a Greve Geral. Que ela venha e que seja forte e fonte de inspiração para as próximas grandes lutas no país.
NOTAS:

[1] “Percepções e valores políticos na periferia de São Paulo”, disponível em http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/Pesquisa-Periferia-FPA-04042017.pdf
[2] A atualização de domingo, 16/04, do placar da previdência dá conta que 275 deputados estão contra a reforma do governo, 101 a favor e 137 não se definiram ou não se pronunciaram tal como mostra o artigo da IstoÉ negócios publicado também em 16/04. Ver https://goo.gl/Lkv8cy
[3]  Um relato interessante pode ser lido no capítulo “O inferno da Fazenda” do livro “Oreste Ristori: uma aventura anarquista” de Carlo Romani.
[4]  Em 1866 ocorreu a primeira conferência da Associação Internacional dos Trabalhadores na qual foi unânime a reivindicação pelas 8 horas diárias. Vito Giannotti discorre sobre a luta pela jornada diária de 8 horas no mundo em seu “História das lutas dos trabalhadores no Brasil”.
[5]  Sobre a greve de 1917 vale o artigo de Rafael Tatemoto na Brasil de fato. https://www.brasildefato.com.br/2017/04/12/primeira-greve-geral-brasileira-completa-100-anos/
[6] Em 1996, no governo FHC, as centrais sindicais convocaram uma greve geral que acabou se demonstrando como um mero movimento de barganha e blefe político, sendo desmarcada pelas mesmas centrais no dia anterior. Ainda assim, 5 milhões de trabalhadores chegaram a paralisar suas atividades.
[7] O Centro de Documentação e Memória Sindical da CUT guarda uma cronologia das principais lutas dos anos 1980 em diante dando destaque às greves gerais. Acesso disponível em http://cedoc.cut.org.br/cronologia-das-lutas
(*) Texto originalmente publicado no site da Nova Organização Socialista em 19/04/2017http://novaorganizacaosocialista.com/2017/04/19/quem-tem-medo-da-greve-geral/

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