terça-feira, 29 de maio de 2012

Sobre o que é e o que não é a #marchadasvadias e porque a esquerda socialista deve ser contra.


Na noite anterior à realização da edição 2012 da marcha das vadias publiquei o post "porque sou contra a #marchadasvadias" partindo de uma reflexão que a marcha nem é de esquerda, nem deveria ser reivindicada pela esquerda, em especial a dita socialista. Passado o fim de semana e publicados os primeiros posts e fotos da marcha eis que sobram referências às participações do PSOL e do PSTU nas marchas em todo o país. O movimento mulheres em luta da CSP-Conlutas, central ligada ao PSTU, chegou inclusive a convocar a participação, o que faz necessário no mínimo uma análise um pouco mais cuidadosa sobre a marcha das vadias e assim ter a clareza se o evento merece ou não ser fortalecido.

A marcha como muitos de seus defensores divulgam é uma iniciativa para "resignificar" o termo vadia afirmando que "se ser livre é ser vadia somos todas vadias". O mote central é a questão da liberdade sexual com muitas placas, cartazes e corpos pintados com "meu corpo, minhas regras", "ei machista, meu orgasmo é uma delicia", "eu escolho com que eu trepo", "nem puta, nem santa, livre" e um infindável número de consignas e "refrões" do mesmo estilo. O público notadamente tem sido de jovens universitárias e setores femininos da classe média, dificilmente se consegue perceber algum setor mais prole nas marchas em todo o país. O tema da violência contra a mulher está pautado mas praticamente como um pano de fundo para o ator principal que é o "direito ao corpo". E é claro que a sociedade que vivemos nega o direito ao próprio corpo, e não se engane, inclusive para os próprios homens. É o que chamamos de alienação. Somos todos aliendados de descobrir quem somos ou o que podemos ser em absolutamente todos os aspectos. Mas existem sim aqueles a quem o "direito de ser" é ainda mais negado, e entre eles estão as mulheres. Sim, isso é real.

Mas precisamos ir mais a fundo para entender o que é e o que não é a marcha. Comecemos com a composição social que citamos antes: estudantes universitárias e setores femininos da classe média, ou seja, setores não proles. E sendo assim, nada mais justo que a marcha expresse as ideias e ideais das classes que a compõem e que a dirigem, a classe média, ou para quem preferir, a chamada pequena-burguesia. Nada mais justo que a bandeira seja, o direito ao corpo. Afinal esses setores não precisam de creche, emprego digno, aumento de salário mínimo. Nada disso. Precisam que a sociedade aceite o direito dessas mulheres exercerem o poder sobre seu próprio corpo, de vestirem o que quiserem e transarem com quem quiser na hora que quiserem. Isso é o central na marcha. Todo o resto não passa de simples coadjuvante.

É exatamente por isso que a tarefa fundamental posta pela marcha é a de "resignificar" a palavra vadia. Torná-la sinônimo de mulheres que sabem o que querem e que não estão aí pra seu ninguém porque ninguém tem nada a ver com isso. Agora, alguém honestamente acha que com isso a violência contra a mulher diminuirá um milímetro que seja? É claro que não, né? Mas isso por si só não invalida essa tarefa por mais que ela seja absolutamente sem sentido. O fato é que a demanda de mudar o significado de uma palavra não moverá a maioria das mulheres em nenhum lugar do mundo. Ela não encontrará eco nas imensa maioria das donas de casa que precisam é do fim do trabalho doméstico. Não tocará os corações das mães mais pobres (que são a maioria das mães) pois elas precisam mesmo é de creche. Ela não encontrará identidade nas operárias que precisam de salário igual pra trabalho igual, fim do assédio no trabalho, aumento do salário mínimo, e um largo etcétera. Nem muito menos moverá as próprias vítimas de violência que precisam de abrigos e leis mais duras contra seus agressores. Nada disso é a pauta central da marcha das vadias. Quem quiser acreditar que é que acredite mas simplesmente está se enganando. E vindo da esquerda socialista, infelizmente está ajudando a enganar os que nela confiam.

Por ser uma marcha da classe média ela não consegue enxergar o capitalismo como inimigo e sim a sociedade machista patriarcal. E já que o problema é com "a sociedade" o enfrentamento é com tudo e todos e ao mesmo tempo com ninguém. Não há porque por exemplo exigir ou enfrentar os governos de plantão. Não é a toa que o ponto alto da marcha na capital federal tenha sido o enfrentamento com um machista que ousou falar o que não devia a algumas participantes. Foi acuado, posto pra correr e preso. Mereceu. Mas é de um triste simbolismo que exatamente na cidade que é o coração do poder político no país tenha sido esse o principal acontecimento. E a Dilma, gente?

Por fim, para não perder a oportunidade gostaria de citar mais uma vez Lenin em sua conversa com Clara Zetkin, imaginando que de alguma forma isso deixe ao menos a dúvida em muitos socialistas honestos que defendem e participaram da marcha. O velho Ulianov após defender a necessidade de um forte movimento internacional de mulheres repreendera Zetkin por não ter impedido que o partido alemão dedicasse seu tempo e energia em debater com as operárias o quanto as relações sexuais e o matrimônio eram peças de museu, com o que Clara após justificar-se, concordou. Segue o trecho:
A que conduz, na final das contas, esse exame insuficiente e não marxista da questão? Ao seguinte: a que os problemas sexuais e matrimoniais não sejam vistos como parte da principal questão social e que, ao contrário, a grande questão social, apareça como parte, como apêndice do problema sexual. A questão fundamental é relegada a segundo plano, como secundária. Isso não só prejudica a clareza da questão, mas obscurece o pensamento em geral, a consciência de classe das operárias.

Outra observação, que não é inútil. O sábio Salomão dizia: cada coisa a seu tempo. Peço-vos responder: é precisamente este o momento de manter ocupadas as operárias, meses inteiros, para falar-lhes do modo como se ama ou se é amado, do modo como se faz a corte ou se aceita a corte entre os vários povos, tanto no passado, como no presente e no futuro? E é isso que se denomina orgulhosamente de materialismo histórico?
Bem, depois de tudo isso dito e depois de recorrer pela segunda vez a Lênin, tenho absoluta clareza que muitos seguirão defendendo que a participação na marcha e a luta pela resignificação são importantes até porque participam sim mas de uma forma "diferente". Bom, eu honestamente espero que ao menos para alguns tenha ficado no mínimo a dúvida para que dela possa quem sabe nascer a correção dessa infeliz política.

7 comentários:

  1. Para o PSTU, a Marcha das Vadias é uma ação progressiva, mas só terá eco se estiver ligada às lutas dos trabalhadores de forma independente, desde que não fique refém das organizações policlassistas, afinal, sem cobrar dos governos e sem denunciar o capitalismo, a luta contra a violência se perderá em suas próprias bandeiras.

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    1. Obrigado pelo comentário Adriano.

      Bem... ela não está ligada com a luta dos trabalhadores. Não nasce da luta dos trabalhadores, nem das suas necessidades mais sentidas, e é por isso que a composição social central é de classe média e o nome da marcha é "das vadias".

      Caminho tortuoso esse o do partido. Tomem cuidado com ele. Os desvios da pequena-burguesia são perigosos.

      Abraços e mais uma vez obrigado pelo comentário.

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  2. A resignificação da palavra vadia pretende coibir, diminuir, impedir ou eliminar uma das formas mais fortes e eficientes de ofender e, portanto, enfraquecer uma mulher em qq situação. Você não consegue entender o que isso quer dizer porque não há nenhum xingamento que possa ser dirigido a um homem com a mesma carga ofensiva e humilhante. E isso só é tão ofensivo e humilhante justamente pelo lugar que a mulher ocupa em nossa sociedade. Esse nome traz embutido a ideia de que nem todo tipo de mulher merece ser respeitada. Se você se veste ou se comporta como “vadia”, não merece o respeito e a consideração das demais pessoas. Percebe o ponto? A sociedade diz, com todas as letras, que existe um certo tipo de mulher que não merece respeito. E pra você ser identificada como sendo deste “tipo”, não precisa muito esforço.

    O que a marcha pretende, é dizer que TODAS as mulheres merecem respeito, independente de serem identificadas como deste ou daquele “tipo”. É tão difícil entender isso?

    A violência automaticamente diminuirá? De fato não. Mas que todos comecem a enxergar as mulheres como merecedoras de respeito, oras! E só não haverá eco imediato entre donas de casa e proletárias, como você gosta tanto de frisar, justamente porque a cobertura deste movimento por TODOS os veículos tem o viés que você apresenta aqui. O que você está dizendo aqui não difere nem um pouquinho do que o reinaldo azevedo ou o olavo de carvalho ou os bispos e padres da vida estão dizendo a respeito desse movimento. Tire as citações de lênin, e seu texto poderia estar em qq boca reacionária.

    E ele tem tudo pra ser compreendido por todas as mulheres. As mães mais pobres são chamadas de vadias quando reivindicam creches. Elas escutam “porque não fecharam as pernas? agora querem creche? se virem!”. As operárias (e suas filhas) são chamadas de vadias pelos encarregados, pelos colegas, pelos patrões, pelos namorados, pelos maridos. Meninas de 13 anos estão dando à luz outras crianças. O desrespeito ao corpo da mulher é causa urgente. Se são as universitárias que podem dar a cara à tapa nesse momento, que seja.

    Não é pauta central do movimento, creches, abrigos, salários. Mas é pauta central o respeito integral pela mulher. Qualquer mulher. Toda mulher.

    Se os desvios da pequena-burguesia são perigosos, quando esquerda e direita combinam perfeitamente no discurso, isso significa o quê?

    Sabe que eu nem estava botando muita fé nesse movimento. Só acordei de verdade pra ele lendo a cobertura jornalística e blogueira. E quando me dei conta de que as críticas eram as mesmas, de todo lado, vi que alguma coisa essas mulheres estava fazendo corretamente.

    Não estou dizendo que o movimento não pode ou não deve ser criticado. São seus argumentos que me assustam. Na verdade, é aquilo que seus argumentos revelam sobre a esquerda, o que me assusta.

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    1. Oi Cora,

      1. Tal como disse anteriormente, não acredito na resignificação. E não é porque sou homem. Outras pessoas tal como a professora e militante feminista Gail Dines também não acreditam.

      2. Sobre o respeito às mulheres independente de como se vestem ou agem reproduzo trecho do meu primeiro post:
      Antes de mais nada é fundamental condenar e combater qualquer argumento que responsabilize a vítima pela violência sofrida por seu agressor. Estupidez da estupidez do estilo "se você se veste como vadia deve ser tratada como uma vadia". Nunca uma roupa, maquiagem, postura, ou modo de agir, pode ser considerada como um convite do tipo "sou toda tua, me pegue e me come agora". Combater essas ideologia imunda é sim uma tarefa de todos aqueles que se dizem de esquerda.

      3. A marcha luta contra um monstro com armas que não surtem efeito. Não se imporá respeito simplesmente dizendo "sou vadia e você não tem nada a ver com isso". O capitalismo é machista. Ele precisa ser machista. Ele poderá admitir um pouco de respeito ali e acolá, mas seguirá sendo machista e opressor. Tal como disse antes mais de uma vez: ENFRENTAR O GOVERNO é a base para conseguir mais que respeito, vida digna.

      4. Meus argumentos são iguais os de Reinaldo Azevedo? Ah tá! No fim das contas parece que não estava tão enganado assim sobre o diálogo ser difícil com você.

      5. Sobre as mulheres pobres e trabalhadoras se identificarem com a luta pela resignificação do termo "vadia", me desculpe, mas só o que me vem a cabeça é que só quem não entende nem convive com a luta das mulheres trabalhadoras pode afirmar tal coisa. Já é difícil para uma mulher explorada e oprimida sair às ruas por creche para seu filho ou pelo fim do assédio, e você acredita ser possível que ela se sinta motivada a lutar pelo direito de ser "vadia" de uma forma libertadora.

      6. Sobre a a esquerda é bom ter em mente que sim ela é machista mas de uma forma que só ela consegue ser. Muitos dizem às meninas que acordam para o movimento, "você é dona de seu corpo, transe com você quem você quiser, e aliás, eu estou bem aqui". Os machistas de esquerda adoram a bandeira de liberdade do corpo e se aproveitam dela. Dizem às suas esposas ou companheiras "temos que ser livres" para satisfazer a si próprios sem nunca se importar com os sentimentos de quem quer que seja e usam de todo tipo de argumento para seduzir em especial as ativistas vindas da classe média, as consomem e as destroem psicologicamente. Então não vejo como a marcha conseguirá combater o machismo nem na sociedade como um todo, nem muito menos na esquerda. Pelo contrário, vejo até como um ambiente fértil para o machismo ao estilo da esquerda se fortalecer.

      Abraços

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    2. Complementando...

      1. Embora o diálogo com você possa ser ou se tornar difícil não quer dizer que seja impossível ou desnecessário. Sinta-se a vontade para rebater minhas posições.

      2. Já ministrei cursos e participei de seminários para mulheres trabalhadoras, inclusive sobre opressão. Não consigo enxergar a luta pela resignificação como parte da luta dessas mulheres. A luta por respeito entre as mulheres trabalhadoras não se manifesta da mesma forma como na classe média.

      Mais uma vez abraços e obrigado pelo comentário apesar da comparação com o Reinaldo Azevedo.

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  3. 1. Ok, como disse anteriormente. Sinceramente? Gostaria que ele perdesse seu sentido e não que fosse resignificado. Mas, como você vê, a questão feminina é complicada e difícil. São milênios de opressão. E não séculos. Todos os livros sagrados justificam essa opressão. Os maiores pensadores colaboram com obras e frases que legitimam essa opressão. Como mudar isso? Não sei. Não sabemos. Vamos tateando aqui e ali. Século xxi, lembra quando isso significava um novo mundo? Pois então.

    2. Eu sei que você defende pautas favoráveis. Não vou repetir o que me incomodou, já disse antes.

    3. Concordo com você. É pouco. Capitalismo e machismo se retroalimentam. Já falamos sobre isso. Mas o fim do capitalismo não trará, automaticamente, respeito às mulheres. E não acho que esse respeito virá a partir do enfrentamento ao governo.

    4. Sei que soou ofensivo. Mas acho que foi necessário. Poderia me desculpar, mas acho que expliquei porque fiz a comparação.

    5. Caramba, a luta é por respeito e não pelo nome. Não existem tipos de mulheres que devem ser respeitadas. Todas devem ser.

    6. Eu tenho isso em mente. Há bastante tempo já. Desde o tempo do movimento estudantil. Você está certo. É por isso que tudo é tão difícil. De qualquer lado que se olhe, é opressão ao feminino o que se vê. A questão é dar à mulher o poder de decisão e acabar com o julgamento. A ideia de se usar e ser usado só existe porque a mulher não é vista como um ser humano pleno de direitos, com autonomia e independência, e sim como o velho objeto sexual de sempre. Até pela esquerda. É o que estou te dizendo desde a minha primeira mensagem. Tem que ser assim? Não. É o governo que mudará isso? Não. A marcha sozinha mudará isso? Não. Mas as reações de todos, que foram tão iguais em seus argumentos, indica porque as coisas continuarão difíceis pra mulher no brasil.

    Bom, acho que ficamos assim. Não achei difícil conversar com você. Darei um tempo.

    []s

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    1. Obrigado de novo Cora por toda a conversa. Não foi difícil não. Como disse há pouco no outro post, suas críticas são bem vindas.

      Abraços

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